Um país triste

O excesso erode a gravitas da personalidade e a importância da palavra. Diminui-lhe a eficácia. A morte de Ihor Homeniuk exigia palavra e acção por parte do homem que sempre falou. Não mereceu nem uma coisa nem outra.

No tempo em que passeava a minha melancolia pelos bancos da universidade, um professor aproveitou para partilhar com meia dúzia de ociosos uma convicção sobre a “natureza” dos portugueses. Anos de estudo – suponho – levaram-no à descoberta de que, na essência, todo o português é católico, monárquico e benfiquista. O primeiro predicado pareceu-me bastante factual. O segundo atribui-o à frequente excentricidade da fauna universitária, e não fiz caso. Limitei-me, tanto quanto me lembro, a terçar armas quanto à última qualidade – o único assunto que na verdade me interessava.

O mandato de Marcelo como Presidente da República (PR) resgatou ao esquecimento aquela conversa ocorrida há quase quinze anos. O que então me parecera uma falhada tentativa de originalidade começava a demonstrar-se. Cumprindo uma fatal lei da vida, lamentei a minha displicência pós-púbere e o julgamento apressado que fizera. Talvez os portugueses guardassem no seu íntimo a vontade de ter como chefe da Estado um monarca.

Não um rei no sentido denotativo, que leva um bando de patuscos a digladiar-se sobre o sucessor legítimo, purezas sanguíneas e a exigir a devolução de Olivença. Em Portugal não existe um problema de regime. Os tempos são outros; e as vontades também. A hipótese seria a de que os portugueses de facto queriam (ou não) uma personagem acima dos partidos e da política comezinha, que servisse de figura paternal e capaz de incarnar o papel de celebridade que noutras paragens régias figuras lá vão desempenhando.

Aos afectos que o PR ia espalhando somava-se a sua natural apetência por estar em todo o lado e falar sobre tudo.

Depois do consulado de Cavaco, de cuja postura emanava o carisma e a empatia de um busto embuçado, o caminho de Marcelo parecia bastante óbvio. Desde o início assumiu-se como o “Presidente dos afectos”. Se dúvidas houvesse sobre o conteúdo de tal bizarro magistério, Marcelo apressou-se a esclarecer. O carinho do Presidente manifestava-se em abraçar todo o português com quem se deparava – contra a vontade de alguns, estou convencido –; tirar selfies por atacado; intervir no decurso de programas de televisão em directo; esbanjar felicitações sem razão aparente, contactando por telefone ou pessoalmente os contemplados; aparecer de torso desnudo para mostrar como se deve comportar quem é inoculado por uma vacina e… não continuo por fastio (além de que o inventário é longo e de conhecimento público).

Aos afectos que o PR ia espalhando somava-se a sua natural apetência por estar em todo o lado e falar sobre tudo. Qualquer acontecimento era propício para que aparecesse e o assunto mais banal servia de pretexto para emitir a opinião – o comentador que há nele resiste – que não sendo pessoal, era a do PR. Ou vice-versa. A esquizofrenia nos cargos públicos merece ser estudada. Certo é que Marcelo tornou a sua presença ubíqua e o seu discurso ininterrupto.

Ao longo de cinco anos, Marcelo tornou-se assim uma espécie de monarca-presidente moderno. Capaz de estar junto de quem sofre infortúnios e de reconhecer o “português anónimo”, exaltando os seus ocultos méritos. Enquanto confirmava a já conhecida desenvoltura na relação com a comunicação social e a habilidade nos jogos de bastidores, sobretudo na relação que cultivava com o Primeiro-Ministro (PM). A (quase) ausência de poderes executivos do cargo trouxe-lhe – tal como aos seus antecessores – um desgaste público mínimo. Quem não decide gera pouco descontentamento. O que por sua vez lhe permitiu gozar de uma popularidade – atestada pelas sucessivas sondagens – digna justamente de um monarca estimado.

Mas por uma vez Marcelo não falou. Ou tardou em falar, que é outra forma de nada dizer. E logo quando mais se impunha que falasse com o peso institucional de PR e com a legitimidade acrescida de uma eleição pessoal.

Mas por uma vez Marcelo não falou. Ou tardou em falar, que é outra forma de nada dizer. E logo quando mais se impunha que falasse com o peso institucional de PR e com a legitimidade acrescida de uma eleição pessoal.

Ihor Homeniuk. O nome é Ihor Homeniuk. Bem sei que a imprensa demasiadas vezes limita-se a falar num “cidadão ucraniano”. Mas este homem tem um nome. E é preciso dizê-lo, ainda que a pronúncia não seja a melhor. E não é assim tão difícil – não há excessos de consoantes seguidas. Pelo menos que seja referido pelo nome e não pela abjecta expressão de “cidadão ucraniano”. Ihor Homeniuk foi torturado até à morte às mãos do Estado Português. O crime foi perpetrado por pessoas concretas, mas delas se encarregarão os tribunais. O que não carece de prova é que a responsabilidade última pela morte de Ihor Homeniuk é do Estado Português.

A selvajaria ocorreu em Março de 2020. E esse acto bárbaro – independentemente das circunstâncias do crime e dos seus agentes – mancha com vergonha e opróbrio um país. Não pode ser de outra forma. Não há diligências a fazer, nem relatórios a atender. Esses serão úteis para os tribunais, processos disciplinares e responsabilidades políticas médias. O que se exigia era um PR cabisbaixo, que trouxesse no rosto a vergonha de todo o país pelo acto que foi praticado. Impunha-se uma declaração pública que obrigasse os portugueses a prestar atenção ao que aconteceu. Era imperativo que Marcelo contactasse a esposa de Ihor Homeniuk, Oksana, transmitindo-lhe o que é sempre impossível dizer por palavras. Mas fazê-lo ainda assim. Porque a decência básica o exige. E daqui, senhores, não vem quaisquer interferências com investigações, inquéritos ou presunções de inocência – isto não vale como argumento, nem como desculpa. Porém, o homem que estava em todo lado e sobre tudo falava, quedou-se mudo. E com ele o país.

Mas Marcelo poderia e deveria fazer mais. Muito mais. Nestes nove meses, enquanto aguardava pelo desfecho de um risível inquérito, cabia-lhe usar de todo a sua influência junto do PM para que a directora do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) fosse demitida. E com ela, ou melhor, antes dela o Ministro Cabrita deveria publicamente assumir a sua responsabilidade política e seguir o mesmo caminho da senhora directora do SEF. E se tal não ocorresse, deveria voltar a falar, uma e outra vez, até que algo acontecesse. Entretanto, a senhora directora apresentou a demissão – e desconfio que não foi nomeada para uma sinecura londrina por ainda existir resquícios de civilização. Já Cabrita mantém-se intacto. Não concebe que a responsabilidade política consiste em mostrar um módico de dignidade quando um organismo sob a sua tutela desonrou o Estado e o país. E à indignidade do SEF soma-se a do governante.

Ihor Homeniuk era ucraniano. A nacionalidade que com desdém e desprezo atribuíamos a todos os imigrantes oriundos das antigas Repúblicas Socialistas de Leste, quer fossem bielorrussos, moldavos ou letões.

Ihor Homeniuk era ucraniano. A nacionalidade que com desdém e desprezo atribuíamos a todos os imigrantes oriundos das antigas Repúblicas Socialistas de Leste, quer fossem bielorrussos, moldavos ou letões. Não interessava muito. Vinham trabalhar para as obras. As mais das vezes com qualificações superiores às de quem os chefiava e deles se aproveitava. Homens e mulheres vulneráveis. Que fizeram o que os portugueses de antanho e os de hoje fazem: partir rumo a melhores destinos e procurar uma vida digna. Também esta afinidade não pareceu interessar ou despertar grande simpatia nacional. Desconfio que não gostamos de nos ver ao espelho.

Na véspera de eleições presidenciais, os candidatos, sob um manto cínico de preocupação, desunham-se a tentar provar que “falaram” quando mais ninguém falou. Que escreveram, quando ninguém escrevia sobre o assunto. Que tentaram, mas não conseguiram. E o que dizem fica a dever mais ao que ambicionam do que à genuína consternação e inquietação com a morte de Ihor Homeniuk. E como num acto final de sordidez, enquanto se prepara o desmantelamento do SEF, PSP e GNR alinham-se como abutres à procura de uma fatia do Orçamento do Estado que inevitavelmente acompanhará a atribuição das funções acometidas àquele quase defunto organismo.

Desbaratar a palavra e os gestos tem consequências na vida do comum dos cidadãos. O que é da responsabilidade de cada um. Quando um PR não percebe a importância da palavra proferida no exercício do seu cargo, os resultados são nefastos e lesam o país. O excesso erode a gravitas da personalidade e a importância da palavra. Diminui-lhe a eficácia. Torna-a vulgar e dispensável. A morte de Ihor Homeniuk exigia palavra e acção por parte do homem que sempre falou. Não mereceu nem uma coisa nem outra. E o silêncio de Marcelo é a vergonha de todos nós.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.