Um mundo sem Escola

No início da década de 30 a maioria das escolas começou a funcionar só de manhã, depois passaram a ser só utilizadas para disciplinas científicas que necessitavam de laboratórios. Em 2037, a Finlândia decretou o encerramento das escolas.

Toca o despertador. O António levanta-se. O pai está a teletrabalhar na sala. Como é terça-feira, a mãe está já a caminho da sua habitual reunião semanal presencial com os colegas na sala de reuniões do armazém cowork próximo de casa. A Joaninha, irmã pequena, ainda dorme.

Enquanto toma tranquilamente o pequeno-almoço, o António olha para o calendário familiar eletrónico no plasma da cozinha: 7 de fevereiro de 2053. A agenda digital com o seu programa semanal indica que nessa manhã tem ginástica e badmington – no ginásio perto de casa – e à tarde terá de ir ao Centro de Atividades Matemáticas.

A Escola terminou completamente em 2040. Depois de décadas de reflexão e muita, muita tinta e discussões públicas, os governos mundiais foram concluindo que a Escola já não servia para este tempo. De ano para ano, o número de professores era cada vez menor, o desinteresse e a indisciplina atingiam níveis impressionantes, tinta e mais tinta, críticas e mais críticas… e uma galopante consciência coletiva difícil de descrever, mas que claramente via na escola uma instituição obsoleta, pelo menos nos países ditos ocidentais..

A Escola terminou completamente em 2040. Depois de décadas de reflexão e muita, muita tinta e discussões públicas, os governos mundiais foram concluindo que a Escola já não servia para este tempo.

Alguns países foram reduzindo gradualmente a atividade das escolas ao longo dos anos. No início da década de 30 a maioria das escolas começou a funcionar só da parte da manhã, depois passaram a ser só utilizadas para as disciplinas científicas que necessitavam de laboratórios e outros equipamentos. Até que, em 2037, a Finlândia decretou o encerramento das suas escolas. No ano seguinte, seguiram-se países como a França, os EUA e a Alemanha, entre outros. Em junho de 2040 terminou a atividade da última escola no nosso país. Claro que nesses anos, em paralelo, foram surgindo os mais variados centros de explicações e atividades; multiplicaram-se as academias disto e daquilo; as bibliotecas, os ginásios e as associações de bairro cresceram exponencialmente. As famílias reorganizaram-se, aproveitando experiências de confinamentos de anos anteriores. Os primeiros anos da década de 40 foram difíceis: muita incerteza, muita tinta. A Escola, de facto, parecia já não servir, mas as alternativas eram difíceis de por em prática e de articular porque eram sempre variadas e dispersas. A coisa começou a equilibrar-se quando foi criada a figura do tutor: cada criança tinha direito a um tutor que orientaria e coordenaria as várias aprendizagens de cada um, segundo um certo currículo muito flexível, com algumas balizas e metas para cada quatro anos.

O António iria fazer 13 anos nesse sábado. Ouvia com frequência histórias sobre a Escola, essa nobre instituição centenária que deixara de existir precisamente no ano em que ele nascera. De bicicleta, a caminho do novo ginásio do bairro, interrogava-se como seria a vida numa Escola, da qual tanto lhe falavam os pais e os mais velhos.

O almoço em casa era bife com batatas fritas, que o António devorou alegremente, depois de mais de duas horas a jogar badmington com uma equipa de franceses em digressão.

De bicicleta, a caminho do novo ginásio do bairro, interrogava-se como seria a vida numa Escola, da qual tanto lhe falavam os pais e os mais velhos.

A caminho do centro de atividades matemáticas, onde iria estar toda a tarde com mais três amigos, um lembrete recordou-o que ainda tinha de ler parte de um e-text para no dia seguinte conseguir falar sobre ele no clube de debates das quartas-feiras. Planeou lê-lo e resumi-lo ao final da tarde ou logo a seguir ao jantar, uma vez que às 22h todos os aparelhos informáticos se desligavam automaticamente (essa fora outra grande luta motivada por tantos problemas de sono e saúde mental nas décadas passadas).

O resto da semana decorreu tranquila, com a academia de ciências na quarta de manhã, o tal clube de debates à tarde, a habitual visita de estudo às quintas-feiras com o grupo da associação cultural do bairro (foram a um museu de etnologia e depois à Torre de Belém) e na sexta-feira a leitura silenciosa de manhã na biblioteca (que ele adorava) e a tarde de conversa com o seu tutor – um antigo professor – que o orientava na aprendizagem e com o qual preparava sempre a semana seguinte.

Às vezes o António cansava-se de andar sempre de um lado para o outro, de manhã e à tarde. De facto, as ruas estavam agora sempre cheias de crianças a moverem-se, ora para a academia disto, ora para a associação ou centro daquilo, do ginásio para os museus e bibliotecas, de casa para tantos lugares. Os autocarros eram quase só para crianças, já que a maioria dos adultos teletrabalhava e para as poucas reuniões presenciais a maioria usava umas pequenas motonaves elétricas muito em voga. As crianças mais pequenas, até aos 6 anos, eram acompanhadas por umas senhoras de idade (a que chamavam carinhosamente “avóguinhas”, diminutivo mistura de avós+pedagogas). A partir dos 7 anos, habitualmente já todos andavam sozinhos: quem não andasse corria o risco de ser troçado pelos pares.

No sábado, o António teve a sua festa de anos no parque do bairro, para a qual convidou amigos dos vários lugares onde passava a semana. A maioria já se conhecia. A idade de 13 anos tinha ganho uma enorme importância nos últimos anos, já que era com ela que se faziam os famosos exames dos 13 anos. Era por isso uma idade charneira, iniciática. Com o final da Escola, as entidades responsáveis pelo ensino tinham decidido que seria necessário alguma forma de avaliação geral, sobretudo para que os tutores de cada estudante pudessem acertar o passo das respetivas aprendizagens. Após correr muita tinta, ficou decidido que seriam realizados vários tipos de exames, de quatro em quatro anos: aos 9 anos, aos 13 e depois aos 17 (estes últimos para quem queria ir para a universidade). Os exames dos 9 anos (que podiam ser realizados também aos 10 ou 11) tinham sido facílimos para o António, rapaz esperto que se preparara bem. Mas os dos 13 anos eram considerados muito mais difíceis já que incluíam muito mais matérias diversas e complexas. O António conhecia rapazes e raparigas que não tinham passado nem à primeira nem à segunda (tendo que repetir aos 14 ou aos 15 anos). Havia uns centros especiais de preparação para estes exames, que funcionavam nos antigos edifícios escolares que ainda existiam (a maioria tinha sido transformada noutra coisa). O António passava lá várias horas, todas as segundas feiras.

Era também às segundas-feiras que o tutor do António tinha uma breve conversa com os seus pais e os punha a par das várias aprendizagens do filho. O risco de dispersão era grande e os tutores tinham recebido muita formação para evitar isso, incentivar e enaltecer cada um dos seus tutorandos e envolver as famílias. Os tutores eram, na sua larga maioria, antigos professores e psicólogos de escolas que de bom grado se tinham reconvertido profissionalmente para esta nova missão. Nem todos estavam satisfeitos com esta grande mudança, até porque “o sistema ainda não está oleado” como frequentemente comentavam entre si. Mas a maioria reconhecia que esta nova forma de ensinar e educar era muito mais personalizada e interessante. Já iam longe os tempos das turmas de vinte e trinta alunos em que poucos conseguiam acertar o passo e em que muitas crianças normalmente se transfiguravam pelo efeito do grupo. Agora não, no um a um com o tutor, cada estudante podia ser ele próprio, genuíno, sem ter de se fingir de engraçadinho ou representar outro qualquer papel para a turma. A maioria dos tutores também trabalhava parte da semana em algum centro ou academia onde por vezes se formavam pequenos grupos de estudo mas sempre com muita autonomia.

Nessa semana o António tinha que apresentar um projeto sobre “a escola” e para isso iria ter de passar mais algum tempo na biblioteca a consultar livros de história e também iria levar o tema ao clube de debate, onde aliás frequentemente se debatia sobre essa antiga instituição.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.