Um mapa do céu

Comecei então a pensar. Como poderia aliviar o fardo daquela dor que ninguém poderia compreender na sua totalidade?

Vislumbro o oceano que habita em mim, em nós.

Ouço as ondas que embaladas nesse oceano, se preparam para, um dia, arrebentar numa praia de areia branca algures neste planeta infindo.

Algum dia. Não sabem quando. Mas vão-se preparando para esse embate, para esse fim, que principiará outros inícios.

O mesmo com o sol e com a lua, dançando numa alternância de passos, um dando lugar ao outro para que possam cumprir os seus propósitos, iluminando os caminhos do dia e da noite, num jogo de começos e conclusões.

Semelhante ocorre com um fruto ou uma flor em fim de vida, cujas sementes, em arranjo com o vento, são plantadas num sítio um tanto mais longe da flor original, até que novo rebento brote, sem saber de onde veio, sabendo apenas de uma morte que lhe deu vida.

Sempre ouvi dizer que quando nascemos, começamos a morrer.

Afinal, uma não existe sem  a outra: a vida sem a morte e a morte sem a vida, sendo o fim uma prerrogativa do início.

Habitamos um tempo que aparenta ser povoado por tantos e diferentes “adeus”: os amigos e família que amamos e que partiram; o modo de vida que conhecíamos e que se metamorfoseou numa realidade algo distópica, tão estranha à nossa maneira de ser; as relações distanciadas; o medo instaurado, induzindo um “adeus” artificial a um modo doce e não ansioso de estar.

Um dos mais temíveis aspetos destes fins é a sensação de que nos foi tirado algo, de que fomos roubados sem que nos pudéssemos defender, sem nada a dizer, a fazer, vítimas de um “adeus” inevitável.

Mas há algo que podemos fazer, se nos aventurarmos a tal.

Em conversa com um amigo, este partilhava comigo o quanto a morte e o vislumbre da sua própria finitude eram o assunto mais angustiante com que se deparava, dando por si, variadas vezes, assombrado por estes pensamentos.

Uma outra amiga falava das diversas perdas pelas quais passou nestes últimos meses, falando de uma ferida que dificilmente acreditava que algum dia poderia sarar.

Outros amigos falavam-me das fortes tristezas pelas quais passavam, algumas com anos de existência, que lhes sugavam a alegria e a memória do seu sabor.

Comecei então a pensar. Como poderia aliviar o fardo daquela dor que ninguém poderia compreender na sua totalidade?

Ao escrever este texto, dei por mim a pintá-lo com perguntas, umas atrás de outras, insaciáveis, inesgotáveis, sem resposta única e sem bem saber a quem dirigi-las.

Numa tarde de um calor esmagador, resolvi fugir aos trabalhos do dia para aliviar esta busca avassaladora e desconcertante com algum humor.

De headphones postos, a rir-me “às bandeiras despregadas”, enquanto as redondezas humanas me olhavam interrogando-se do motivo para tanto riso, navegando pelos sketches do grupo cómico “Monty Phyton”, dei por mim a ouvir “Always Look On The Bright Side Of Life” do filme “The Life of Brian”.

(…) nada existe de mais verdadeiro e real do que o Amor de Deus, e se este é assim, infinito e exponencial, em tudo será bom nos mistérios, ainda por nós não compreendidos, da sua criação. 

Com uma carga de humor aguçada, a música provoca-nos a desafiarmos os absurdos da vida, o que não compreendemos e sentimos ser incompreensível, as dores, as angústias, os desafios que se nos apresentam inultrapassáveis, os vários “adeus” e até a própria morte e fazermos uma escolha: a de tomarmos o caminho da luz, usando das propriedades mais características de um cristão, a alegria e a fé, mesmo quando o que mais tememos se nos apresenta à nossa frente.

Lembrei-me então de um exercício prático para auxiliar esta escolha quando certos decursos da vida nos parecem incompreensíveis, por aparentarem ser duros, inclementes, grande exercício que Santo Inácio nos propõe e que ele próprio praticava, o de olharmos a tela estelar que Deus pintou no céu.

Por isso, a cada um destes meus amigos, propus-lhes uma noite a contemplarmos as estrelas, não para nos tornarmos senhoras e senhores eruditos quanto aos segredos dos céus, nem tão pouco porque achava que lá encontraríamos respostas para os infindáveis porquês sobre estes “adeus” da vida, mas para que, olhando os astros encontrássemos consolo no realizar do nosso pequeno tamanho face à magnitude do universo e dos seus elementos, face à dimensão imensurável da própria vida.

Assim, ainda que sem respostas às nossas perguntas, depois de uma noite a olhar as estrelas, encontrámos algum alívio neste realizar do nosso entendimento sobre a realidade e os seus caminhos, que por ser ainda tão estreito, tanto lhe escapa sobre a beleza entranhada nas várias faces da vida, pois mesmo que nem sempre vejamos, sintamos ou compreendamos, nada existe de mais verdadeiro e real do que o Amor de Deus, e se este é assim, infinito e exponencial, em tudo será bom nos mistérios, ainda por nós não compreendidos, da sua criação.

 

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.