Um encontro fotográfico numa tarde que não se repetirá

E o breve fez-se eternidade. Vivian Maier é um pretexto para aqui vos trazer o Zé Maria, para o lembrar como o homem bom que era. Um abraço, Zé.

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Quando Vivian Maier saía à rua, era um acontecimento, mas só o soubemos mais tarde, depois de um historiador ter comprado num leilão, em 2007, o conteúdo de dois contentores que alguém tinha abandonado e descobriu neles mais de 100 mil fotografias em milhares de negativos, diapositivos e fotografias impressas, além de uma série de vídeos caseiros e gravações de áudio.

John Maloof, o tal historiador, percebeu que tinha entre mãos um tesouro, ao deparar-se com fotografias espantosas do quotidiano de uma América, numa travessia que vai dos anos 1950 até 1980. Vivian (1926-2009) era ama, cuidava de crianças, e nas horas vagas saía pelas ruas e fotografava o que via — sem nunca o ter dito, nem mostrado, nunca revelando a maior parte dos negativos.

A América nunca nos é estranha mesmo que nunca tenhamos tido a oportunidade de a visitar. Os filmes e as séries, as músicas e as bebidas, as notícias e as comidas — há muito que há muito nos entra pelos olhos dentro e nos torna quase íntimos de Nova Iorque ou Los Angeles, de hábitos, quotidianos e paisagens. Somos muito americanos. E essa familiaridade ajuda a vermos o trabalho de Vivian. Mas a misteriosa ama, filha de pai austríaco e mãe francesa, nascida em Nova Iorque em 1926 e que se revelou também naquelas milhares de fotografias, deu-nos a ver um trabalho com um calor e uma sensibilidade muito próprios. O fotógrafo Joel Meyerowitz descrevia-a como dona de “uma sensibilidade especial para captar o momento, para detetar o rasgo de um gesto, para a micro expressão de um rosto”, e em cada fotografia o nosso olhar é o dela, vemos aquelas pessoas, vivemos aquelas ruas, observamos aquelas paisagens.

Não vos trago aqui em vão as coisas de Vivian Maier — há um filme, um documentário extraordinário, que esteve nomeado para os óscares em 2014 e que se pode ver em DVD (sim, ainda existem) e em streaming (no Filmin, mas também há na internet). Houve uma exposição que passou por Cascais, onde eram mostrados 135 trabalhos, e essa muito pequena amostra já era de fazer pasmar.

Na tarde em que vi a exposição encontrei-me à saída com o Zé Maria, o padre José Maria Brito, que vinha de celebrar um casamento. Quando me lembrei deste encontro, dei-me conta de que, à sua maneira, uma e outro eram cuidadores, sempre próximos dos seus, mesmo que de modo discreto; e uma e outro eram observadores, respigadores de um quotidiano que registavam, no seu tempo e modo, ela que tudo guardava, ele que tudo refletia.

Tudo isto foi em maio de 2021, confirmei nas datas da exposição — já há três anos. A memória atraiçoa-nos: imaginava este encontro há menos tempo, mas talvez me tenha enganado por causa do contacto regular que, sobretudo por insistência dele, mantínhamos, fosse por whatsapp, fosse por telefonemas, para comentar a atualidade, sugerir a leitura de um artigo, ou mandar um abraço pelos meus anos ou pelo aniversário da Clara, tal como no 25 de Abril do ano passado, ele que certamente teria celebrado os 50 anos da revolução com a alegria que é este dia. Nesse encontro acabámos, como acabávamos invariavelmente as mensagens e telefonemas, a prometer um encontro mais demorado para breve. E o breve fez-se eternidade. Vivian Maier é um pretexto para aqui vos trazer o Zé Maria, para o lembrar como o homem bom que era. Um abraço, Zé.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.