Um dos meus contos preferidos de Sophia de Mello Breyner Andresen começa assim:
“Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.”
Para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
O resto do conto é igualmente maravilhoso, mas foram concretamente estes primeiros parágrafos aquilo de que me lembrei enquanto lia a mais recente exortação apostólica Gaudete et Exsultate. Sophia escreve sobre esta santidade que se oferece todos os dias de novo, e que não se confunde com a aparente hiper-perfeição mundana de Mónica; que, aliás, é incompatível com ela. O Papa Francisco fala-nos dos “santos ao pé da porta”, daqueles que se dedicam com amor às suas tarefas costumeiras, de uma santidade de pequenos gestos mais do que de grandes empresas, de atenção ao detalhe, mais do que de horizontes épicos. Esta exortação não é para teólogos – ou não tem de ser. É para todos. É para Mónica, até. E essa é a primeira razão para a ler. Se alguém nos escreve uma carta, é de bom tom, pelo menos, lê-la.
E essa é a primeira razão para a ler. Se alguém nos escreve uma carta, é de bom tom, pelo menos, lê-la.
Todo o texto da exortação assenta na premissa de que a santidade é uma vocação universal, ou seja, de que todos fomos chamados a ser santos. Pode ser difícil medirmo-nos com os santos dos altares, imaginar-nos vestidos de túnicas medievais ou a repetir as histórias heróicas ou místicas de tais figuras. Mas não se trata disso, em princípio. Trata-se de reconhecer que fomos criados por Deus como uma preciosidade irrepetível. Ser santo é aceitar e realizar o melhor que soubermos o “caminho único e específico que o Senhor predispôs para nós”. E aqui está uma segunda razão: sempre que leio ou digo alto frases como estas, obrigo-me a parar e recordar o sentido das palavras. O que quer dizer isto? Que cada pessoa é criada e amada incondicionalmente por Deus (sim, o Todo-Poderoso, anterior ao universo…). E como se isso não fosse suficientemente espantoso e quase incrível, esse mesmo Senhor de Todas as Coisas criou-nos com “um projecto único e irrepetível (…) desde toda a eternidade”. Santidade é, portanto, deixar-se conduzir neste caminho, “deixar que tudo esteja aberto a Deus”, “escolher Deus sem cessar”.
Ser santo é aceitar e realizar o melhor que soubermos o “caminho único e específico que o Senhor predispôs para nós”.
Percebe-se assim, também, porque é que o Papa Francisco insiste na estreita união entre santidade e missão. Viver em santidade é assumir a vida como missão – uma missão única, irrepetível, mas não isolada e inseparável da construção do Reino de Deus (25). Por isso, não deve existir uma dualidade entre “espiritualidade” e “actividade”, como se uma nos pudesse distrair de outra. A vida de oração é necessária à santificação porque precisamos continuamente de nos alimentar da Graça de Deus, de viver na sua presença, precisamos do silêncio, de tempo para nos deixarmos olhar, para que a missão não seja meramente um contínuo actualizar de uma lista de tarefas, mas caminho de amor, atenção, entrega.
Para entender melhor os contornos concretos da proposta da santidade, nada melhor que voltar àquilo que o próprio Jesus disse sobre o assunto: as bem-aventuranças. Aí encontramos o horizonte ao qual fomos chamados. O Papa Francisco demora-se a explicar cada uma das bem-aventuranças, procurando tirar a crosta do hábito com que alguns de nós já ouvem estas palavras e, ao mesmo tempo, restituir-lhe a sua força original. Fica patente, ao longo desta passagem da exortação, a contradição entre santidade e mundanidade, uma contradição que sempre assumirá novos contornos, mas que não é, em si, nova, nem relativa ao mundo presente. O mundo presente não é um mundo em que a santidade não seja possível – é-o na mesma medida em que o foi o mundo dos primeiros apóstolos, por exemplo. Recordar isto quando em tantos contextos é fácil cair num discurso alarmista e desesperado sobre a contemporaneidade é uma terceira razão para ler com atenção o texto do Papa Francisco, demorando-nos nesta releitura das bem-aventuranças. Outro ponto que aqui sobressai é que a santidade dá resposta ao nosso desejo mais profundo de bem, de beleza, de verdade, um desejo que não alinha nem se satisfaz com os mínimos. Levar a sério o desejo de felicidade que todos temos exige de nós que não nos contentemos nem nos distraiamos com nada que não o preencha realmente, completamente, definitivamente, ou que não resista ao sofrimento e mesmo à morte.
Levar a sério o desejo de felicidade que todos temos exige de nós que não nos contentemos nem nos distraiamos com nada que não o preencha realmente, completamente, definitivamente, ou que não resista ao sofrimento e mesmo à morte.
Há mais razões para ler a exortação – considerar as características da santidade no mundo actual, pensar sobre os inimigos da santidade, redescobrir o papel do discernimento…enfim, os assuntos ligados são vários e o texto do Papa é simples e cheio de ternura mas também cheio de urgência. O Papa recorda um segundo momento em que Jesus descreve a santidade – quando fala das obras de misericórdia. O critério de avaliação da nossa vida é, antes de mais nada, o que fizermos pelos outros. Ser santo é reconhecer Jesus nos outros, especialmente nos pobres e atribulados. Ser santo não é pertencer a um clube exclusivo de mística, nem sequer ser ultra-disciplinado num aperfeiçoamento autorreferencial. É servir, é sair, porque Deus, o Todo Poderoso, escolheu depender de nós, por muito miseráveis que sejamos, para fazer chegar o seu amor ao mundo. Cada dia. Todos os dias, outra vez.
(A primeira citação é do conto “Retrato de Mónica” de Sophia de Mello Breyner Andresen, e todas as outras da tradução portuguesa da exortação apostólica Gaudete et Exsultate).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.