No passado dia 12 de fevereiro o Governo apresentou o Programa de Transformação da Paisagem, onde se prevê a plantação de espécies autóctones em 20 % da área florestal do país, em áreas ardidas ou de matos, através do pagamento de 80 a 150 euros por hectare (Um quinto da nossa floresta vai ter de mudar e há 168 milhões de euros para começar a fazê-lo).
Pela primeira vez em muito tempo o assunto relativo à transformação da paisagem, nomeadamente o investimento nas árvores autóctones, surge enquanto objetivo do Governo e quase pronto para sair do papel.
O problema dos incêndios rurais em Portugal tem sido abordado por investigadores e especialistas na área. Hoje dispomos de diversos estudos, desde os que abordam os fatores de risco de incêndio aos que discutem medidas de prevenção ou de combate. Com este artigo pretendo sobretudo esboçar as motivações para desejarmos e exigirmos uma paisagem diferente. Afinal é esta uma utopia ou será possível?
Começo por afirmar que não temos (nem devíamos ter) de nos resignar “fatalmente” a manter uma paisagem que tem demonstrado não ser resiliente a incêndios. Os incêndios rurais representam um problema complexo, com elevados custos, sendo os económicos mais comumente referidos. Também daqui decorrem enormes custos sociais e ambientais, ainda que pouco contabilizados.
As causas estruturais são sobejamente conhecidas. O abandono da agricultura, da pastorícia e da apanha do mato, associado à expansão da indústria da pasta de papel, contribuiu para um aumento da propensão da paisagem ao fogo. Isto tem sido obviamente agravado por uma crescente falta de gestão florestal, explicada por limitações demográficas, como o despovoamento e o envelhecimento, e pela fragmentação da propriedade, que, ao gerar um baixo rendimento, não compensa a gestão desta.
Se existiu até hoje um discurso derrotista entre nós, relativamente a uma possível transformação da paisagem, deve-se a um ciclo de programas políticos pouco encorajador de uma mudança de paradigma, promotor até de uma certa resignação.
Em debates sobre o assunto é comum alegar-se o facto de o eucalipto ser uma opção rentável para o proprietário. Este argumento é compreensível, mas não deixa de ser uma fração da realidade, ao retirar da balança os custos económicos, sociais e ambientais associados aos incêndios.
A manutenção da paisagem atual continuará a trazer enormes custos de prevenção de incêndios, nomeadamente no controlo da expansão do eucaliptal, que surge por regeneração pós-fogo criando densas manchas não geridas. A reconversão destas áreas de eucaliptal comporta enormes custos para o proprietário, como referem os autores do livro “Portugal em Chamas – Como Resgatar as Florestas”.
Creio ainda que o argumento de o eucalipto ser a única opção rentável corre o risco de gerar um discurso derrotista. Pois este argumento não promove um verdadeiro diálogo entre a sociedade, a investigação e os governantes, sobre as possíveis vias de obtenção de rendimento associadas a uma paisagem alternativa, mais resiliente aos incêndios.
Neste aspeto, se existiu até hoje um discurso derrotista entre nós, relativamente a uma possível transformação da paisagem, deve-se a um ciclo de programas políticos pouco encorajador de uma mudança de paradigma, promotor até de uma certa resignação:
- A área atualmente ocupada por eucaliptos resulta de mais de 80 % dos investimentos em arborizações e rearborizações, autorizadas com base no regime jurídico em vigor desde 2013 (em: “Portugal em chamas – como resgatar as florestas”, 2018).
- Até ao momento, os projetos pós-incêndios raramente estiveram focados na mitigação do risco de incêndio. De facto, logo após os incêndios de 2017, em fevereiro de 2018, 40 milhões de eucaliptos estavam certificados para comercialização (em “Portugal em chamas – como resgatar as florestas”, 2018).
- Por outro lado, os apoios financeiros no âmbito do Programa de Desenvolvimento Rural 2014-2020 (PDR2020), que poderiam contrariar esta tendência, nomeadamente os apoios à constituição de sistemas agroflorestais e de florestas de folhosas autóctones, tiveram orçamentações e taxas de execução muitíssimo baixas (Programa de Desenvolvimento Rural 2014-2020).
Do lado da comunidade científica, a necessidade de criação de paisagens resilientes ao fogo enquanto estratégia de prevenção de incêndio tem sido cada vez mais defendida e é assunto de trabalho do centro de investigação no qual me integro, desde 2011 (O Ordenamento do Território na Prevenção dos Incêndios Florestais).
Uma paisagem resiliente ao fogo obtém-se através do aumento da diversidade e compartimentação do uso do solo (agricultura, pastagem e mata ribeirinha) e da utilização de árvores menos combustíveis (folhosas autóctones).
O eucalipto poderá continuar a existir na nossa paisagem, mas circunscrito a zonas estratégicas, de menor risco de incêndio. Dito isto, o ordenamento do território, entendido como a distribuição espacial dos usos do solo de acordo com a aptidão ecológica da paisagem, é uma ferramenta fundamental.
Porém, a implementação de ações com vista à transformação da paisagem não deixa de ser um ponto sensível e complicado, num país onde a propriedade florestal privada ocupa cerca de 97%, com uma enorme variedade de proprietários e, por isso, também de vontades.
Na procura de um meio-termo entre o papel do proprietário e o papel do Estado nesta problemática, recorro a dois princípios da Doutrina Social da Igreja (DSI), o princípio da função social da propriedade e o princípio da subsidiariedade.
De acordo com os dois princípios da Doutrina Social da Igreja referidos, um proprietário que não possua meios para realizar essa atividade de forma autónoma, tem o direito de exigir ao Estado alternativas que o ajudem a garantir a função social da sua propriedade.
Se nas atuais dinâmicas de mercado, uma atividade que é desejável do ponto de vista do bem público gera pouco rendimento para o proprietário (insuficiente para pagar os custos da sua gestão), o Estado tem de encontrar soluções que viabilizem a manutenção dessa atividade. Este ponto é ainda mais relevante nas zonas rurais desfavorecidas.
De acordo com os dois princípios da DSI referidos, um proprietário que não possua meios para realizar essa atividade de forma autónoma, tem o direito de exigir ao Estado alternativas que o ajudem a garantir a função social da sua propriedade. Pode ainda reunir outros nesta demanda, sobretudo aqueles que têm menos possibilidades de se fazer ouvir.
Por fim, proprietários ou não, todos são chamados a contribuir para este debate, uma vez que este não é apenas um problema do “mundo rural”. Para isso, penso que será importante percebermos onde nos posicionamos quanto à possibilidade da transformação da paisagem rural: esta é para mim uma utopia ou uma realidade a construir?
Creio que no encontro entre as duas está a chave da mudança. Pois se a utopia é o que nos motiva para a mudança, o confronto com a realidade é o que a torna possível.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.