Tragédia humana dos refugiados

Temas como o dos refugiados persistem dramaticamente no tempo, mesmo quando deixam de ser o foco da bolha mediática. Sobre a efemeridade do discurso mediático e político, a literatura tem o poder de nos cativar para uma mais funda reflexão.

Ao terminar o livro Um Muro no Meio do Caminho, a escritora Julieta Monginho fala-nos do cenário de horror dos “náufragos em terra [que] fogem do mesmo terror que ataca os europeus”. Refere-se aos milhares de homens, mulheres e crianças que buscam a salvação na Europa rica, fugindo de situações extremas e requerendo o fundamental direito de asilo em solo europeu. Tem como pano de fundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assente nos valores fundacionais da própria construção europeia.

A espessa cortina mediática da pandemia Covid-19 tem ocultado muitos outros problemas de grande impacto, retirando-os da agenda noticiosa, como se eles deixassem de existir. Porém, a dramática realidade dessas questões globais mantém-se. Esse é o caso da interminável tragédia humanitária dos refugiados. Fugindo a desesperados a cenários de guerra, de fome e de outras formas de violência extrema, milhares de pessoas dirigem-se continuamente para o El Dourado da Europa, sobretudo através do Mediterrâneo. Mas o velho continente não mostra capacidade de acolhimento, sendo incapaz de pôr em prática o multissecular valor da hospitalidade.

Não por acaso, desde a epígrafe, a narrativa está perpassada de referências a uma longa tradição literária e cultural, remontando à Grécia, a Homero e ao princípio intemporal de acolhimento do estrangeiro. Adquirem especial ressonância as referências a Atenas, à Acrópole, ao mar Egeu e às figuras de Ulisses e de Aquiles. Porém, este é o tempo de fugitivos indefesos, humilhados e ofendidos, com vidas desfeitas, não sendo possível assistir indiferente ao seu drama.

Dotado de um título metafórico e simbólico, o livro de Julieta Monginho – escritora e magistrada do Ministério Público – é composto de uma sucessão de dramáticas histórias de vida de refugiados que se lançam num caminho desconhecido, rumo à Europa da riqueza, da liberdade e da paz. Confluem aqui valores, culturas e religiões diversos, pois os refugiados têm origens plurais: sírios, afegãos, iraquianos, etc. Lançam-se ao mar em embarcações frágeis, por desespero e instinto de sobrevivência.

A espessa cortina mediática da pandemia Covid-19 tem ocultado muitos outros problemas de grande impacto, retirando-os da agenda noticiosa, como se eles deixassem de existir. Porém, a dramática realidade dessas questões globais mantém-se.

Apavorados, mendicantes e sofridos, estes refugiados sobreviventes são novos peregrinos forçados. Fogem do inferno, mas são acolhidos em prisões desumanas, assim despojados dos seus sonhos, com destinos amputados e profundamente penosos, como tão bem nos descreve a autora. Une-os uma “atribulada viagem pelo horror”, esperando-os depois o sofrimento e a incerteza do amanhã. Assistimos a uma exemplar amostra de histórias de vida, de forma a salientar o rosto humano desta tragédia, repleta de pessoas altamente vulneráveis.

São mulheres e homens espoliados, que vivem os limites do sofrimento da condição humana, muitas vezes presenciando a morte dos familiares mais próximos. Desde logo, as lágrimas destes refugiados “pedem conforto e afago”, mas sobretudo soluções humanamente dignas, pois são pessoas aprisionadas entre dois mundos – um de que fogem e outro que não as acolhe. São pessoas “sem terra para onde voltar, sem caminho por onde progredir”.

Estes refugiados estão unidos pela fragilidade tocante de quem perdeu quem mais amava, mas também a casa e o chão das suas raízes, acabando presos em campos de refugiados, em tendas e contentores nas ilhas gregas de exílio forçado. Em cada um desses campos, o refugiado sente-se preso numa “ilha rodeada de mar, silêncio e desespero”. E isto é “apenas um fragmento da grande vaga de deslocações forçadas que assola um planeta exausto da acção predatória dos humanos”. São sobretudo mulheres e jovens os protagonistas destes dramas de vidas contadas, de forma viva, intensa e testemunhal.

Desde logo, as lágrimas destes refugiados “pedem conforto e afago”, mas sobretudo soluções humanamente dignas, pois são pessoas aprisionadas entre dois mundos – um de que fogem e outro que não as acolhe.

Para dar a resposta possível a este massivo e chocante drama humano, mobilizaram-se organizações não governamentais, bem como grupos de especialistas e de voluntários; e criaram-se campos de refugiados mais ou menos improvisados, na possível ética do cuidar que a situação de emergência exige. Conhecemos bem alguns desses nomes de ilhas e de campos de refugiados: Alepo, Vial, Chios, etc. A banalidade do Mal conhece muitas manifestações e estes “desvalidos do mundo” são uma das mais interpelantes nos nossos dias: “O mal começa na rejeição do outro.”

Temas como este, da maior urgência humanitária, persistem dramaticamente no tempo, mesmo quando deixam de ser o foco da bolha mediática durante alguns dias ou semanas. Sobre a efemeridade do discurso mediático e político, a literatura tem esse poder de nos cativar para uma mais funda reflexão sobre as grandes questões do nosso tempo. Outrora berço das mais duradouras civilizações, de viagens e aventuras heroicas, o velho mar Mediterrâneo transformou-se nos nossos dias em túmulo de milhares de náufragos indefesos: “A Europa não quer saber dos fracos”. Qual o papel da arte para “transmitir o sobressalto humanitário e interrogar o humano?”

Não estranha que a par do livro de Julieta Monginho, outros escritores tenham escrito textos sobre este Ocidente rico de História, orgulhoso “reduto do pensamento humanista” (relembra a escritora), como em O Mito da Europa, de Nuno Júdice; ou que formulem uma sentida prece sobre este drama humano que acontece diante dos nossos olhos, como em Ágora, de Ana Luísa Amaral – todos pondo em questão uma visão mitificada da velha Europa e, ao mesmo tempo, interrogando a casa comum que queremos construir para o séc. XXI.

Em Julieta Monginho, como sugerido, sobressaem vidas suspensas em desumanos campos de refugiados, às portas fechadas da Europa. Afinal de contas, impõe-se fazer “a história deste momento vergonhoso” que não pode deixar a Europa e o mundo num estado de indiferença. Definitivamente, a casa comum do futuro não deve ser construída com xenofobia e racismo, nem com muros e fronteiras.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.