Em 1873, uma menina de 10 anos – Mary Ellen Wilson – que morava em Hell`s Kitchen, Nova York, era maltratada pelos seus pais adotivos. Um vizinho, incomodado com o que se passava, apresentou uma queixa às autoridades locais. À época, não havia leis que protegessem as crianças. Por isso, a autoridade nada podia fazer. Frustrada com a situação, a assistente social que foi designada para o caso pediu ajuda à A.S.P.C.A (Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade contra Animais). O fundador desta entidade, Henry Bergh, contratou um advogado e deu entrada com uma ação no tribunal de Nova York para proteger a Mary Ellen. O argumento que utilizaram era engenhoso: a lei em vigor protegia os animais de tratamentos desumanos; a Mary Ellen, enquanto ser humano, pertence ao reino animal; consequentemente, a Mary Ellen deve beneficiar da protecção que a lei confere aos animais. O tribunal concordou com este argumento e estendeu a protecção da lei às crianças.
Após este caso, foi fundada a Sociedade Nova Iorquina para a Prevenção da Crueldade contra as Crianças (dezembro de 1874). Desde então, as crianças receberam vários direitos, incluindo o direito à educação.
Trago tudo isto à colação porque, se é verdade que tudo mudou desde 1873 no tocante aos direitos das crianças, ainda há caminho a fazer quanto à criação de uma cultura de reconhecimento da situação de igual dignidade das crianças e jovens. A começar pelo seu papel no processos educativo. Falamos, de forma cada vez mais consequente, na centralidade do aluno no processo de ensino e aprendizagem. Mas continuamos a dar primazia ao ensino quando o que importa é a aprendizagem. E isto começa logo pela questão da voz que damos aos alunos na sua própria educação.
Se as crianças têm um direito à educação, se a educação é um processo de desenvolvimento pessoal e social e se isto começa desde que se entra na escola, então participar ativamente na vida da escola é um direito fundamental dos alunos.
A educação é, em primeiro lugar, um processo de desenvolvimento pessoal. Mas, logo de seguida, é um processo de desenvolvimento social. Isto é, de pegar na sua liberdade individual e assumir a responsabilidade de intervir na comunidade tornando o espaço social partilhado melhor. A educação deve levar o aluno a mobilizar-se como agente de transformação do mundo. Cumprir a lei e as regras de urbanidade é muito importante. Mas não chega.
Isto não é algo que se aprenda lendo livros ou ouvindo um adulto a falar. É uma atitude e são competências que se desenvolvem ao longo do tempo fazendo-o. Não é algo que se aprenda aos 18 anos quando se passa a poder votar e a ser criminalmente responsabilizável. É algo que se aprende, ou não, desde que se entra na escola.
Se as crianças têm um direito à educação, se a educação é um processo de desenvolvimento pessoal e social e se isto começa desde que se entra na escola, então participar ativamente na vida da escola é um direito fundamental dos alunos.
E o que significa participar ativamente na vida da escola? Para começar, significa ser ouvido pelos adultos. Não apenas ser ouvido como grupo – os alunos -, mas ser ouvido como indivíduo – cada aluno. Em segundo lugar, significa que a voz de cada um tem um impacto significativo; que as coisas mudam por causa de ti. Por fim, significa que isto se passa não apenas nas coisas triviais – a cor de uma parede, o menu da cantina ou a festa dos finalistas -, nem apenas em coisas simbolicamente relevantes – o tema do ano ou o local de uma visita de estudo -, mas em questões centrais da vida colectiva – o regulamento interno, o modo como nos organizamos, ou até, que professor contratar entre vários candidatos. Por fim, significa que os sonhos dos alunos são incorporados no seu processo de aprendizagem.
Claro que há um papel para os educadores em tudo isto. Não poderia ser de outro modo. É um papel de regulador do desejo, de promoção do adiamento da gratificação, de orientação do olhar, de chamar à responsabilidade e à necessidade de se ser consequente. Tudo com diferentes nuances em função da idade e desenvolvimento pessoal de cada aluno.
Alargar às crianças o direito a não ser maltratadas foi uma revolução em 1870. E se lhes reconhecêssemos o direito de ser agentes efectivos da sua educação; quão revolucionário seria?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.