Habitualmente, situamos a teologia, enquanto discurso sobre Deus, no limite das possibilidades – ou para lá das possibilidades – das palavras humanas. Ou porque a imaginamos num estilo de reflexão de tal modo elaborada racionalmente, que dificilmente permite o acompanhamento do seu significado, a não ser por mentes muito treinadas – pensemos em certas formulações da teologia trinitária… Ou então, porque o seu “objeto” – precisamente o não-objeto Deus – é de tal modo inacessível à palavra e ao pensamento humanos, que apenas pode ser colocado para lá dos limites do formulável, sendo apenas dito como indizível.
Não pretendo negar o valor destas variantes e destes aspetos do discurso teológico. Até porque é sempre perigosa a pretensão de enjaular Deus no tecido das nossas palavras, mais ou menos ardilosas; e ainda mais perigoso é enchermos a nossa vida com a presunção orgulhosa de possuirmos Deus, de sabermos seguramente quem é e o que quer – normalmente para dominarmos os outros, com base em tal autoridade, reconhecida institucionalmente ou não.
Mas deste estatuto “extraordinário” de Deus poderíamos concluir algo diferente, que não o estatuto igualmente extraordinário do texto teológico – e de qualquer nível da reflexão teológica, mesmo na mais básica experiência de fé, também ela concebida como extraordinária. Refiro-me a assumirmos que não faz sentido falar “diretamente” de Deus, porque isso corresponde normalmente a uma ilusão, já que ele nunca será objeto direto desse discurso. Ou seja, a teologia – mas também a própria experiência crente – só é possível indiretamente, enquanto experiência do mundo e enquanto palavra a partir dessa experiência.
Mas mesmo aqui – ou especialmente aqui – continuamos a ter tendência para o “extraordinário”: realmente teológicos e, por isso, base de um discurso sobre Deus seriam apenas alguns acontecimentos ou alguns aspetos do mundo, precisamente aqueles que, devido ao seu estatuto, fossem mais do que mundanos, ou já para lá deste mundo. E esquecemos, de forma dramática, que se aplicássemos esta regra aos Evangelhos, ou melhor, à vida de Jesus, pouca coisa seria verdadeiramente teológica. Coisa estranha.
Quando afirmamos que Jesus revela Deus – e o humano – de forma plena, não nos referimos apenas a uma parte especial da sua existência (esse erro já foi recusado pelos primeiros dogmas cristológicos). Toda a sua existência é reveladora. Acontece que a quase totalidade dessa existência nem sequer entra nos relatos evangélicos, porque terá sido insignificante. Não porque não tenha significado, mas precisamente porque nada possui de extraordinário. O seu grande significado coincide, precisamente, com o significado teológico do quotidiano, enquanto não extraordinário (as ambiguidades do português não nos permitem usar o termo “ordinário”, como noutras línguas).
De facto, o quotidiano possui uma profundeza de significado inesgotável – é aí que está albergado, precisamente, o significado do humano. Só que, habitualmente, não estamos suficientemente atentos para ler esse significado – e, com isso, perdemos o significado teológico de grande parte da nossa existência. Salva-nos, no emaranhado da nossa ordinária desatenção, a atenção extraordinária de alguns de nós, a que chamamos normalmente artistas, ou poetas, ou místicos. Não porque ignorem este mundo e divaguem noutro mundo qualquer, mas porque mergulham na profundidade escondida em cada pormenor do dia a dia e aí encontram um imenso significado revelador do sentido da existência, potencialmente também de um sentido teológico. Essa será a verdadeira teologia do quotidiano, de que Jesus é paradigma, seja nos anos em que viveu no anonimato, seja na forma como assumiu a sua missão pública, mergulhado nas movimentadas ruas da vida quotidiana, entre amizades e tensões, entre comidas e jejuns, entre risos e choros.
De facto, o quotidiano possui uma profundeza de significado inesgotável – é aí que está albergado, precisamente, o significado do humano. Só que, habitualmente, não estamos suficientemente atentos para ler esse significado – e, com isso, perdemos o significado teológico de grande parte da nossa existência.
Há dias faleceu um desses poetas místicos do quotidiano, legando-nos uma assombrosa obra de leitura do pormenor, da extraordinária força do “ordinário”, dos acontecimentos que nos rodeiam, das coisas em que estamos mergulhados, dos outros com quem tecemos redes, de nós próprios e dos nossos mistérios simples. O Padre João Aguiar Campos, que viveu o stress intenso da comunicação social como ninguém, já há muito nos tinha habituado, com os seus escritos poéticos, a uma exímia atenção aos pequenos eventos de cada instante, extraindo-lhes significados inauditos e uma graça própria. Mas, nos últimos tempos da sua vida, marcados por dura e prolongada doença, quis “ler a vida devagar, leve o tempo que levar…”. E foi partilhando – por sinal, nas redes sociais digitais, que ajudam a tecer o quotidiano contemporâneo – a sua leitura do inesgotável significado daquilo que parece insignificante. É um dos exemplos mais completos que conheço daquilo que poderíamos chamar uma teologia do quotidiano – em que Deus raramente é referido de forma direta, mas simplesmente adivinhado no tecido de outras relações. O que ouvimos, o que vemos, o que cheiramos, o que tocamos, o que saboreamos – da natureza em geral, das coisas, dos animais, dos outros humanos – atinge-nos de forma impressionante, colocando-nos perante o mistério de um mundo que não precisa de nada especial para vibrar em todos os seus elementos. E quem melhor nos pode falar de Deus, senão a sua escondida presença nos acontecimentos em que vivemos mergulhados? Uma espécie de experiência crente à flor da pele.
Há dias faleceu um desses poetas místicos do quotidiano, legando-nos uma assombrosa obra de leitura do pormenor, da extraordinária força do “ordinário”, dos acontecimentos que nos rodeiam, das coisas em que estamos mergulhados, dos outros com quem tecemos redes, de nós próprios e dos nossos mistérios simples. O Padre João Aguiar Campos, que viveu o stress intenso da comunicação social como ninguém, já há muito nos tinha habituado, com os seus escritos poéticos, a uma exímia atenção aos pequenos eventos de cada instante, extraindo-lhes significados inauditos e uma graça própria. Mas, nos últimos tempos da sua vida, marcados por dura e prolongada doença, quis “ler a vida devagar, leve o tempo que levar…”. E foi partilhando – por sinal, nas redes sociais digitais, que ajudam a tecer o quotidiano contemporâneo – a sua leitura do inesgotável significado daquilo que parece insignificante.
Aproveito a partida deste místico do quotidiano para recordar – antes de tudo, a mim mesmo – a importância de superarmos a nossa habitual desatenção ao quotidiano, enquanto “geração perversa” que busca sinais extraordinários, porque é incapaz de encontrar esses sinais onde eles verdadeiramente estão, por todo o lado, todos os dias. A teologia cristã, fundada na experiência de Jesus, ou é teologia extraída do quotidiano, ou não é nem verdadeiramente teologia – porque constrói idolatricamente o seu objeto – nem verdadeiramente cristã – porque não é fiel à incarnação. Em Jesus, a humanidade real do dia a dia é o incontornável lugar de revelação de Deus e do caminho de salvação. Quem o procurar noutro lado, não encontra o Espírito de Jesus, mas um outro espírito qualquer. Obrigado, Padre João, por nos ajudar a redescobrir o mais importante da nossa fé – e da vida, simplesmente.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.