Ridendo castigat mores, a rir se corrigem os costumes. Assim se justificava a comédia, segundo o poeta e latinista francês Jean de Santeul. Esta expressão veio-me à memória recentemente, em duas ocasiões distintas: ao rever uma entrevista do comediante Stephen Colbert, e a propósito do vilão trágico Joker.
Bastaria assistir a uma emissão do programa Late Show with Stephen Colbert para perceber a sensibilidade política deste comediante católico norte-americano, profundamente crítico do actual presidente dos EUA. Numa entrevista dada em Agosto passado, o comediante definia a missão do seu programa televisivo (e, por arrastamento, da própria comédia) como sendo a de pôr a nu a «heresia contra a realidade». Face a uma retórica política manipuladora, que procura negar os factos e suprimir a crítica através de bullying, cabe aos comediantes apontar a verdade. O riso transforma-se, assim, em denúncia da manipulação e restauro da realidade.
Face a uma retórica política manipuladora, que procura negar os factos e suprimir a crítica através de bullying, cabe aos comediantes apontar a verdade.
Embora debruçando-se diariamente sobre a agenda política, o humorista recusa o papel de força de resistência política, mas apenas o de espelho, como quem diz: «sim, é mesmo isso que estás a ver. Não é de rir?». Num contexto de confusão, onde se diz que «o que é, não é; eles é que estão contra nós» (o racismo não é racismo, a discriminação não é discriminação, a mentira não é mentira), cabe ao comediante soltar a primeira gargalhada para desmontar o engodo.
Olhando para Joker, é difícil não notar o aspecto trágico que envolve estas personagens condenadas ao riso – o bobo, o arlequim, o palhaço. A ambiguidade que as envolve transparece até no próprio imaginário pop, onde o palhaço tanto pode ser objecto de riso como motivo de pavor (bastaria pensar no palhaço Bob, dos Simpsons, ou nos vários filmes de terror que têm palhaços como vilões).
Joker vive outro tipo de drama: ri por doença, e ri do que está doente. Enquanto aprendiz de comediante, Arthur Fleck/Joker investiga as razões do riso, até constatar o quão violento é o nosso humor: rimo-nos do sofrimento alheio. Joker somatiza esse riso patológico de uma sociedade violenta. O imaginário punk que se nota naqueles que se associam a ele revela uma postura niilista perante a realidade doente. O riso trágico não apenas reflecte a violência: celebra-a, abraça-a sem reservas e recebe-a como destino. «Se é isto que nos faz rir, pois seja!»
Em Colbert e Joker encontramos duas formas de cumprimento do «mandato da comédia». Porém, enquanto o primeiro corrige para construir, o segundo conclui que a destruição é risível. Dá vontade de perguntar: como vemos a realidade? Que riso nos provoca? Em tempos de confusão, que comédia poderá devolver-nos à realidade?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.