Sócrates, Câncio e o (des)Maio de ‘68

Se há coisa que estas últimas semanas nos deverão ensinar é que, como cidadãos, nos é exigida uma atitude de permanente vigilância para salvaguardar através dela a saúde da nossa nação.

Tem-se escrito muito ao longo dos últimos dias sobre José Sócrates, sobre Fernanda Câncio e sobre a relação de José Sócrates com Fernanda Câncio. Vejam-se os exemplos de Rui Ramos, de João Miguel Tavares, ou de Rui Tavares, que mostram bem como é possível ter pouco em comum e ainda assim concordar num ponto muito básico: estamos perante uma situação que ultrapassa todos os limites da honestidade, da honra, da mais elementar decência moral. Sócrates, Câncio e Sócrates e Câncio são neste momento páginas negras na história da nossa política e do nosso jornalismo. E são páginas que demorarão muito tempo a superar, dando lugar a uma desconfiança justificada perante a possibilidade de olhar com benevolência quer para a classe política quer para o jornalismo de investigação.

Independentemente das consequências judiciais para José Sócrates dos processos que estão ainda em julgamento, restam cada vez menos dúvidas na opinião pública de que fomos durante anos governados por um homem manipulador, mentiroso, corrupto, movido pela vaidade e capaz de urdir uma teia poderosa onde os mais potentes interesses privados da nação estavam implicados. Há suspeitas de que estaremos apenas a assistir à ponta de um icebergue: Sócrates não pode ter agido sozinho, não pode ter agido sem o conhecimento do partido e dos que o rodeavam, não pode ter agido sem a conivência do poder económico e até da justiça. Tudo isto é cada vez mais evidente. Sócrates falhou-nos, a classe política falhou-nos, a justiça falhou-nos. Sócrates é uma página negra para a história da nossa política que demorará a superar.

Independentemente, por sua vez, das consequências judiciais, profissionais, ou pessoais para Fernando Câncio que advenham da sua relação com José Sócrates, restam também cada vez menos dúvidas na opinião pública de que fomos durante anos sistematicamente informados por jornalistas com ligações opacas e demasiado próximas a este governo corrupto. Sócrates mentiu e não precisamos que a justiça o confirme para que todos o saibamos. Mas Fernanda Câncio não pode esperar que o país acredite que uma jornalista de investigação de créditos firmados não tenha tido a curiosidade de perceber se a herança que Sócrates dizia ter alguma vez teria existido, assim como não pode esperar que a sociedade acredite que foram as informações recentemente reveladas no decorrer do processo que lhe revelaram pela primeira vez o carácter de José Sócrates. Fernanda Câncio, a jornalista que influenciava jornalistas, também nos falhou ou com a sua conivência em relação a Sócrates, ou com a sua grosseira incompetência em relação aos sinais que estavam à vista de todos. Por isto, Câncio representa, por seu turno, uma página negra para a história do nosso jornalismo que demorará a ser superada.

No ano em que celebramos o quinquagésimo aniversário do movimento de Maio de 68, é impossível disfarçar a desilusão quando pensamos naquilo que foi alcançado. É só isto que é capaz de oferecer a geração que cresceu imersa na linguagem da condenação da gritante desigualdade gerada por um capitalismo corrupto, da busca pela libertação de estruturas sociais e morais opressivas, da indignação perante a sobranceria com a qual eram tratados os operários e os iletrados da sociedade? É só isto? Tanto dá ser de direita quanto de esquerda para que esta desilusão seja legítima. Afinal, passados cinquenta anos da emergência de um dos movimentos sociais mais poderosos que a Europa já viu no seu território, parece difícil que não nos sintamos traídos por aqueles que mais prometiam combater a corrupção instalada nas nossas sociedades. A política falhou na sua promessa de transparência; e o jornalismo falhou na sua promessa de independência. Têm falhado sistematicamente – e Sócrates e Câncio são apenas exemplos das falhas repetidas a que temos assistido ao longo das últimas décadas.

Seria fácil e reconfortante pensar que aprenderemos com os eventos dos últimos anos patrocinados pela figura de José Sócrates & Ca. Seria fácil e reconfortante pensar que a corrupção da classe política e que a opacidade dos interesses dos jornalistas levarão os futuros políticos e os futuros jornalistas a aprender com o que ao longo das últimas semanas tem vindo a público. Mas sendo fácil e reconfortante, seria também ilusório. Se há coisa que estas últimas semanas nos deverão ensinar é que, como cidadãos, nos é exigida uma atitude de permanente vigilância para salvaguardar através dela a saúde da nossa nação. E talvez seja este, afinal, o maior legado dos protestos de Maio de 68: a corrupção e a opacidade continuarão a estar aí, mas a vigilância daqueles que amam a justiça e a transparência aí continuará também. Que os futuros Sócrates e Câncios o saibam: aqui estaremos quando eles vierem!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.