Aconteceram no passado fim de semana, na cidade do Kansas, Missouri, EUA, os U.S. Gymnastics Championships. Quatro dias para mostrar o que há de melhor na ginástica americana, para superar recordes pessoais e históricos, para apreciar a perícia e o talento de anos de treino; é praticamente uma antecâmara para os Jogos Olímpicos do próximo ano, em Tóquio. A ginástica, como todos os desportos, exige disciplina, treino, horas de bastidores para poucos minutos de milhares de olhos postos na coreografia que foi ensaiada e repetida, antes, vezes sem conta.
Quem surpreendeu o mundo com as suas proezas foi Simone Biles. Primeiro, com a sua performance na trave de equilíbrio, onde apresentou movimentos nunca antes feitos por uma mulher numa prova deste nível e sendo a primeira pessoa de sempre a sair da trave com um duplo mortal com dupla pirueta, perfeitamente. No último dia, surpreendeu com a sua coreografia no solo.
Hoje, aos 22 anos, (Simone Biles) é considerada a melhor ginasta de todos os tempos e guarda lá em casa vinte e cinco medalhas ganhas entre Jogos Olímpicos e campeonatos mundiais.
Biles, que nasceu em 1997 em Columbus, Ohio, EUA, tem uma daquelas histórias americanas. É a terceira de quatro irmãos, que andaram por várias famílias de acolhimento, devido aos problemas dos pais com álcool e drogas. Quando o avô materno descobriu a sorte dos quatro netos, decidiu acolhê-los e, finalmente, adotou Simone, que encontrou um lar estável em Spring, Texas. A partir daqui, foi uma infância quase como tantas outras: escola, amigos e o crescimento normal no seio de uma família católica, que se mudou do Belize para os EUA. O extraordinário era a sua paixão pela ginástica, que a levou a passar da escola para o sistema de home schooling, para que se pudesse dedicar às mais de 30 horas semanais de treinos. Acabou o secundário e estou Gestão de Empresas à distância, para continuar focada na ginástica.
Hoje, aos 22 anos, é considerada a melhor ginasta de todos os tempos e guarda lá em casa vinte e cinco medalhas ganhas entre Jogos Olímpicos e campeonatos mundiais.
Mas chegar aqui não foi um caminho sem dificuldades – que não foram só as próprias do desporto.
A ginástica acrobática foi, tradicionalmente, um desporto para atletas brancos. E os corpos femininos afrodescendentes não preenchiam o estereótipo de beleza que se queria ver no tapete. E isto é tão verdade que, quando Biles entrou no circuito internacional, os comentários ao seu corpo “cheiinho” ou à cor da sua pele fizeram-se ouvir. Ao ponto de uma ginasta italiana com quem competia, em 2013, ter dito (depois de derrotada por Biles), que da próxima vez iria para a trave com pele negra, para poder ganhar (acabou por pedir desculpa publicamente pelo seu comentário racista, mais tarde).
Talvez não nos imaginemos pelos areais portugueses a tentar um triplo-duplo mortal, ou seja, um salto mortal duplo com três rotações! Mas não será um exercício demasiado difícil imaginarmo-nos pelas praias da nossa costa a comentar a grandeza de alguns corpos ou a moda de alguns outfits. Ou aqueles passeios à beira-mar em que comentamos sem reparo as vidas de outros. Ou o tempo que perdemos a queixar-nos das férias que não tivemos, em vez de agradecermos a bola de Berlim e os dias de descanso.
Podemos treinar intensamente para ser mais agradecidos, para reparar nas pequenas coisas do dia-a-dia. Podemos treinar os nossos olhos a ver a pessoa além da sua cor e do seu tamanho e a ver a sua dignidade de ser humano.
Depois da sua proeza, Biles publicou uma foto nas redes sociais com o sorriso rasgado no rosto de quem se superou a si própria e fez história. É com esta alegria que podemos aprender. Podemos treinar intensamente para ser mais agradecidos, para reparar nas pequenas coisas do dia-a-dia. Podemos treinar os nossos olhos a ver a pessoa além da sua cor e do seu tamanho e a ver a sua dignidade de ser humano. Podemos dar verdadeiros saltos mortais aos nossos preconceitos e alegrarmo-nos verdadeiramente com as vitórias dos outros ou enchermo-nos de compaixão com as suas dificuldades.
Durante os noventa segundos da atuação de Biles, ninguém pensou nas horas de treino que levaram àquele momento. Mas se não fosse esse tempo de esforço e dedicação, deceções e frustrações, pequenas vitórias e grandes quedas, este momento perfeito não seria possível. E isto é assim em tudo na vida e, também, no cuidado do nosso olhar sobre os outros: uma cultura de acolhimento e aceitação do diferente, uma atenção à dignidade de cada pessoa, a promoção da igualdade, da solidariedade, da paz e do amor treinam-se nos bastidores das nossas consciências para que, quando sairmos para os areais da vida, estejamos mais prontos a elogiar-nos e a cuidar-nos do que a humilhar e criticar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.