Sexualidade: Tensões a explorar na Doutrina Cristã

A vida da Igreja, em génese permanente, vive da relação recíproca, por vezes tensional, entre Liberdade e Autoridade.

É do beneditino francês Ghislain Lafont (1928-2021) a afirmação de que «sempre que a Igreja teve medo do humano, das suas manifestações, do seu desenvolvimento ou, por outro lado, sempre que renunciou, por razões espirituais, ao dever de pensar e impediu os seus próprios fiéis de o fazerem, agiu contra o Evangelho que devia anunciar». Do teólogo luterano alemão Eberhard Jüngel (1934-2021) ficou o mote de que cabe ao teólogo de profissão, ou simplesmente à inteligência teológica elementar partilhada pelos cristãos, o duplo dever de clarificar os fenómenos e de os salvar. Desatende-se a essa dupla tarefa quando, com a clarificação demasiado rígida, se destrói o fenómeno (o pensamento da realidade acaba por anular a própria realidade), ou, então, quando o fenómeno se impõe, dispensando ou recusando ser iluminado de fora (a realidade recusa submeter-se a qualquer clarificação crítica). Considerando este dever, em matérias humanamente complexas, cultural e religiosamente sensíveis como são aquelas que se referem à sexualidade, pode cair-se em dois extremos. Por um lado, na autorreferencialidade e no relativismo cultural de as impor por si mesmas, quase de forma a-moral, furtando-se a qualquer crítica e recusando qualquer autoridade heterónoma ou horizonte de verdade. Por outro, pode cair-se no risco de uma apologética eclesial que, em nome da defesa de uma verdade abstrata e de uma suposta clarificação a partir de princípios recebidos de um passado idealizado e a-histórico, como se a sua maturação e a sua formulação não tivesse dependido, também ela, de condições históricas, culturais e eclesiais particulares, desconsidera os contornos da realidade presente, tidos como indevidos, sintoma, sem mais, de corrupção e desordem.

A EXPERIÊNCIA, ENTRE LIBERDADE E AUTORIDADE

No vasto campo que é a sexualidade, cujo entendimento tem sempre e inevitavelmente uma modelação histórica e cultural, seria dificilmente aceitável que a referência à verdade evangélica, à qual a fé cristã se refaz, passasse por uma simplificação da realidade, com os seus contornos específicos, de tal modo que a desconsiderasse. Se há algo que cabe à fé cristã é o cultivo, à luz do Evangelho, de uma hermenêutica da complexidade da realidade e do quadro cultural em que assume contornos específicos. E porque a sexualidade não é uma abstração, mas uma realidade que diz respeito a pessoas concretas, à experiência que fazem de si próprias, ao modo como se compreendem e se exprimem, o desejo de clarificação desse fenómeno não poderá ser feito à revelia das existências reais e do quadro cultural em que se compreendem. Também S. Agostinho ou S. Tomás pensaram o humano no quadro de uma cultura. Se a leram à luz do Evangelho, não é menos verdade que leram o Evangelho dentro da respetiva cultura. Dessa maneira inculturada, fizeram nova teologia, fizeram avançar a doutrina, deram vida à tradição.

Ora, se há campo em que a modernidade teve fortíssimas repercussões foi no entendimento da sexualidade, independentemente do juízo antropológico e moral que se possa fazer delas. O que seria difícil de justificar e de aceitar é que a reflexão moral atual da Igreja sobre a sexualidade fizesse de conta de que essas mudanças não aconteceram ou que as considerasse imediatamente indevidas e desordenadas: a passagem do sexo à sexualidade; do ato sexual entendido essencialmente como instrumento para alcançar o fim da geração de filhos à compreensão mais ampla do bem que é a própria relação e do bem que esta é para cada uma das pessoas implicadas nela; do prazer visto essencialmente como desordenado a valor de experiência e de expressão de amor. Ou, então, que se quisessem identificar como sendo de direito divino entendimentos precedentes, tidos como os únicos legítimos, quando foram, também eles, necessariamente modelados por culturas específicas, em momentos históricos particulares. Neste sentido, o apelo à verdade da revelação cristã não pode significar a defesa intransigente de uma antropologia abstrata e fechada a novas condições históricas, culturais e eclesiais, como se só o passado tivesse autoridade para dizer o humano e como se o presente e o futuro não fossem mais do que declinação de uma identidade já acabada, insensível e imune ao tempo que muda e ao modo como as existências e as comunidades se compreendem e exprimem nele.

Neste sentido, o apelo à verdade da revelação cristã não pode significar a defesa intransigente de uma antropologia abstrata e fechada a novas condições históricas, culturais e eclesiais, como se só o passado tivesse autoridade para dizer o humano e como se o presente e o futuro não fossem mais do que declinação de uma identidade já acabada, insensível e imune ao tempo que muda e ao modo como as existências e as comunidades se compreendem e exprimem nele.

Será preciso reconhecer que ainda vão grandes distâncias entre a repetição do princípio formulado pelo Papa Francisco de que «a realidade é mais importante do que a ideia» (Evangelii Gaudium, nn.231-233), a sua apropriação como critério teológico e a sua realização como guia de atuação pastoral. Sendo fácil de enunciar, é difícil de assumir como traço enformador de uma forma eclesial de pensamento e de ação. Neste sentido, não parece consequente que à suposta autorreferencialidade, ao subjetivismo ou ao relativismo com que as matérias ligadas à sexualidade possam ser, hoje, abordadas do ponto de vista individual e cultural, se oponha idêntica autorreferencialidade, agora eclesial, autoritarismo e rigidez doutrinal que desconsidere os sujeitos e a experiência que fazem de si mesmos. Se é certo que a experiência e a autoperceção não podem ser o único critério de avaliação moral, também dificilmente se aceitará que esta possa ser feita à revelia daquelas. Se há dado cultural sem o qual, hoje, não nos compreendemos, é a centralidade do sujeito livre, mesmo que esteja exposto a muitas derivas e que precise de muitos contrapesos (a obrigação moral, a responsabilidade ou a fraternidade, por exemplo). Ainda que se tenha afirmado contra a autoridade da Igreja, trata-se de uma herança incontornável da cultura moderna, que faremos corresponder sem dificuldade ao coração da verdade evangélica. Ora, se com a modernidade, a afirmação do princípio da liberdade e da dignidade de qualquer sujeito se fez de forma paralela à rejeição da autoridade, muito concretamente da Igreja, a luta anti-modernista travada pela Igreja, entre meados do século XIX e meados do século XX, contra as mudanças culturais que, então, se afirmavam, fez-se pela defesa da autoridade à custa da liberdade. Porque tal caminho conduziu a Igreja a um fechamento sobre si mesma, ressentido e estéril, o Concílio Vaticano II quis assumir uma relação bem diferente com o mundo – alterou o modo de o olhar e criou disponibilidade para aprender com ele –, reconhecendo, concretamente, a liberdade como expressão incontornável do reconhecimento da dignidade humana.

Se há dado cultural sem o qual, hoje, não nos compreendemos, é a centralidade do sujeito livre, mesmo que esteja exposto a muitas derivas e que precise de muitos contrapesos (a obrigação moral, a responsabilidade ou a fraternidade, por exemplo). Ainda que se tenha afirmado contra a autoridade da Igreja, trata-se de uma herança incontornável da cultura moderna, que faremos corresponder sem dificuldade ao coração da verdade evangélica.

À Igreja e ao seu magistério, precisamente para não perder autoridade e não cair na paralisia, reduzindo a Tradição a peça de museu de um tempo ido – se permanecer intacta, morre; quando se reduz a forma institucional, torna-se força estéril –, cabe trabalhar teologicamente e dar expressão pastoral à articulação entre liberdade e autoridade, de modo que a afirmação de uma não implique a anulação da outra. A vida da Igreja, em génese permanente, vive da relação recíproca, por vezes tensional, entre ambas. A Tradição, que é testemunha de uma força espiritual, respirará nessa mesma articulação, na medida em que não disser simplesmente respeito à conservação fiel do património recebido, mas que, sem deixar de o fazer, implique igualmente o empenho criativo na realização das promessas de futuro ainda por cumprir. Não é apenas o passado e a sua estabilidade a ter autoridade sobre o presente (sobre como nos compreendemos como seres humanos sexuados e sobre o exercício da sexualidade, ou sobre o entendimento de como se realiza o carácter unitivo e fecundo de uma relação, por exemplo). Os movimentos criativos em curso no presente e as promessas de futuro também a tem. A fidelidade à Tradição é, por isso, fidelidade ao património recebido e fidelidade ao futuro por construir, na busca da realização mais plena da forma de Cristo: já somos e ainda haveremos de ser. Entretanto, temos o tempo presente como lugar de vida e de discernimento. Trata-se de um ato de atenção espiritual ao Espírito que circula nas páginas da Escritura, das existências reais e das culturas presentes. Por isso, é também ato de leitura. O Evangelho lê e ilumina a realidade, abrindo-a, elevando-a, corrigindo-a; a realidade lê o Evangelho, permitindo que diga algo que ainda não tinha podido dizer, por ainda não ter tido os leitores de agora. Ao Magistério cabe a autoridade de autorizar a continuação deste ato vivo de leitura, cuidando para que aconteça em fidelidade ao Evangelho de Jesus e ao seu Espírito que tanto inspira o texto sagrado e anima a vida da Igreja como age nas existências e nas culturas onde a vida acontece.

A SEXUALIDADE, ENTRE NATUREZA E CULTURA

«Sempre que se trata da vida humana, natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas». A afirmação é do Vaticano II, na Constituição Gaudium et Spes, n. 53. A ser assim, também quando se trata da sexualidade, importará conjugar natureza e cultura, sem as misturar, mas também sem as separar. Se a tendência cultural atual se inclina para sublinhar a cultura, desconsiderando a natureza (o sexo/a sexualidade teria que ver essencialmente com o quadro biográfico, social e cultural) e a exaltar o foco da experiência e da liberdade, reduzindo todo o campo a escolha e autodeterminação individual, independentemente do dado biológico ou de princípios morais heterónomos, o discurso eclesial tende a sublinhar a natureza, desconsiderando a cultura (o sexo/a sexualidade teria que ver essencialmente com a natureza, o dado biológico) e a evocar a autoridade da tradição e de princípios atemporais, caindo no risco de menorizar a experiência pessoal, de desconsiderar os quadros socioculturais dentro dos quais a natureza é sempre interpretada e de não considerar verdadeiramente a liberdade de consciência.

Quando se aborda este tema e se procura aprofundar a relação fundamental entre o dado natural-biológico e os contornos socioculturais, o discurso eclesial tende a inclinar-se para atribuir à natureza toda a autoridade, fazendo-a coincidir, sem mais, com a vontade de Deus. Interroga-se a teóloga S. Morra: «o corpo como dado e o seu carácter sexuado são suficientes? Somos assim tão materialistas para pensarmos que as caraterísticas sexuais primárias, as que são conhecidas no momento do nascimento, dizem tudo o que somos? E o que acontece depois não diz nada?». Na verdade, não é apenas o dado biológico a determinar-me, já que é dentro de uma tradição que ganho consciência de mim, que me compreendo e que me exprimo. Por isso, que significará e como se poderá conjugar «a relação entre o dado biológico, que a língua anglo-saxónica chama sex, a determinação sexual e todo o alcance simbólico de papéis e de cultura já associados ao corpo biológico?» (Brotéria 196-1/2023: 69). O ser humano – a sexualidade, as relações sexuais, o ato de gerar – não é simplesmente natural. Como humanos, somos seres de palavra, de consciência, de manualidade. Somos inteligentes, sensíveis e capazes de ação. Só o reino animal responde simplesmente à natureza. Aí, sim, a gestão do sexo é simplesmente natural. Mas não é isso que se espera do ser humano, que seja simplesmente natural. Por isso, convirá ter uma certa cautela em considerar, sem mais, “contra-natura” uma relação unicamente a partir de algumas diferenças fisiológicas ou biológicas. Se não podem ser desconsideradas (quando o género se impõe como ideologia cultural), não poderão ser absolutizadas (certos discursos eclesiais que evocam a natureza como dado bruto, culturalmente neutro). Em última instância, a cultura poderá suprir aquilo que não está ao alcance da natureza. Hoje parecer-nos-á caricato, mas tempos houve em que uma mulher a fazer desporto ou um transplante um coração também foram considerados “contra natura”. De facto, o que é natural e o que é cultural não são evidências imediatas.

Por isso, que significará e como se poderá conjugar «a relação entre o dado biológico, que a língua anglo-saxónica chama sex, a determinação sexual e todo o alcance simbólico de papéis e de cultura já associados ao corpo biológico?» (Brotéria 196-1/2023: 69).

Pensemos ainda, a título de exemplo, no dado bíblico de que Deus “homem e mulher os criou” (cf. Gn 1,27). Desde logo, a criação tem como alcance teológico que o homem e a mulher não têm autodeterminação total sobre si mesmos. Há um “dado” a reconhecer como “dom” benevolente de Deus criador que abre possibilidades de realização futura (a identidade humana tem uma origem que precede – somos criados à imagem e semelhança de Deus – e tem um destino de realização que atrai – alcançar a forma de Cristo). Porém, o que significa afirmar que, por natureza, o ser humano é homem e mulher? Será que esse dado natural-biológico é interpretado do mesmo modo ao longo dos tempos? Ser homem ou ser mulher no século I, na Idade Média, no século XIX ou no século XXI é exatamente o mesmo? Ser homem ou ser mulher na Europa é o mesmo que sê-lo em África ou na Ásia? De forma unânime, diremos que não, porque o dado biológico de ser homem ou ser mulher conjuga-se sempre num quadro sociocultural particular. Se a natureza é relevante e, mesmo, incontornável, não é menos relevante atender às mais variadas formas sociais, culturais e religiosas em que a natureza é declinada. As palavras e as práticas que têm acompanhado ao longo dos séculos o que significa ser homem ou mulher variam e evoluem, e mais deverão evoluir de modo a superar o que em tais palavras e em tais práticas retemos, hoje, como sendo injusto, sobretudo para a mulher. No futuro, outras palavras e outras práticas se seguirão, na busca do que é mais humano. Se hoje nos choca a escravatura ou a menorização na mulher, o que chocará de nós às gerações futuras?

Como consequência, poderemos afirmar serenamente que o ser humano, sem se separar da natureza, “naturalmente”, interpreta-a, muda-a e transforma-a. Por esta razão, convém acautelar-se de projetar na ordem natural o que é da ordem simbólica, social e religiosa ou de bloquear os processos socio-culturais, simplesmente porque não se conformam à natureza. No caso da teologia e das práticas cristãs, acresce o cuidado de não fazer corresponder a revelação ou a direito divino o que é da ordem da interpretação simbólico-social da natureza em determinados momentos da história. Tal como no passado, o Evangelho continuará a servir-nos de inspiração e de orientação.

Nota: este artigo retoma e reelaborada parte do editorial “Igreja e (homo)sexualidade” da revista Brotéria, março de 2023, pp. 254-263.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.