Anualmente, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publica um relatório sobre “o estado da educação”. Colige os dados estatísticos que considera mais relevantes sobre o sistema educativo português e, quanto a alguns, compara-os com os dados dos outros países da UE. Este ano, organizou um seminário no qual pediu a alguns peritos que, a partir do relatório de 2018, propusessem políticas educativas para procurar responder aos desafios que resultam dos dados.
Dos problemas enunciados por estes peritos destaco dois: a retenção no ensino básico e a falta de professores que se começa a sentir hoje e que previsivelmente se irá agudizar durante a próxima década. Dois problemas do sistema que, com magnitudes e impactos muito diferentes, são de facto dos principais a que temos de responder rapidamente.
Comecemos pela retenção no ensino básico. Em Portugal, as taxas de retenção têm vindo a diminuir de forma acentuada na última década. Ou os alunos de hoje são muito melhores do que os de há 10 anos, ou as escolas e os seus professores têm vindo a amadurecer nas suas práticas educativas (há quem diga que não é nada disto; que é porque o sistema educativo português perdeu exigência e qualidade mas esse argumento choca de frente com a suave mas paulatina melhoria dos resultados dos alunos portugueses nas provas internacionais que demonstram que estamos a melhorar e bem!). Mas voltemos à retenção. Em 2018, no 2.º ano de escolaridade, 6,6% dos alunos foram retidos. Isto significa que cerca de 1,5 aluno em cada turma ficou para trás. Não são muitos em termos absolutos. Mas são demasiados em termos humanos. São demasiados por serem crianças de 7 ou 8 anos e porque, tanto quanto nos dizem as estatísticas, essa é apenas a primeira de outras retenções. Embora muito se discuta sobre as vantagens e desvantagens da retenção, o que a evidência nos diz é que a primeira retenção não resolve muito e é um bom pronúncio de outras no futuro. A retenção parece não resolver nada. Pelo menos para o aluno. E convenhamos que não são esses quase dois alunos em cada turma que põem em causa a “exigência” ou o “rigor” de uma educação como deve ser (bem sofrida que sem muito sofrer nada se faz…).
Será que o perfil de professor desenhado no século XX se mantém útil para a escola do século XXI? Será que o modo de formar professores no século XX é o mais adequado no século XXI? Será que o que entusiasmava os jovens do século XX a querer ser professor é o mesmo que entusiasma um jovem do século XXI?
Temos então um problema de retenções no ensino básico. Mas como se resolve? Do ponto de vista das políticas públicas, só tenho ouvido propor uma de duas soluções: proibir a retenção no sistema de ensino ou o lançamento de uma “política nacional de combate à retenção”. Ambas me parecem más soluções, que criam incentivos perversos. A primeira, porque resolve o problema administrativo mas não resolve o problema de fundo: nenhum aluno é retido mas, provavelmente, os alunos que antes eram retidos não recebem o apoio de que precisam (e a que têm direito). A segunda, porque trata as escolas e os professores como profissionais de segunda categoria, que não conseguem resolver questões delicadas da sua missão central sem que o Ministério da Educação lhes venha ensinar como se o faz. Alguém alguma vez ouviu a classe médica dizer que, para combater uma doença difícil e persistente, precisam que o senhor Ministro da Saúde os ensine!? Percebo a bondade de uma política nacional de combate à retenção (há uma em curso neste momento ainda que com outro nome), mas parece-me que tem um lado indesejado mas muito relevante: contribui para a perpetuação da menoridade técnica e profissional da classe docente e das suas unidades profissionais (as escolas).
E isto leva-nos ao segundo problema enunciado pelos peritos na conferência do CNE: a falta de professores em Portugal. 46,9% dos professores da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário têm 50 ou mais anos de idade e apenas 1,3% têm menos de 30 anos. Isto significa que, nos próximos 15 anos, metade dos professores se vão reformar. E não se vê que haja candidatos a substituí-los… os cursos de formação inicial de docentes têm poucos candidatos, muitos estão a fechar. Hoje, há cada vez mais alunos sem professor e cada vez mais dificuldade em recrutar professores, quer no público quer no privado. O que pode ser feito para inverter esta situação?
Todos estamos de acordo que é importante “dignificar a profissão docente”; isso é uma evidência. Mas como se faz? É só pagar mais? É fazer campanhas de marketing? Penso que este é daqueles problemas que precisa de medidas de política pública (quanto mais não seja porque o Estado emprega diretamente cerca de 90% dos docentes dos ensinos básico e seucndário, o que, para mim, é parte do problema). Mas seria um erro procurar resolver o atual problema da falta de docentes com as receitas do passado. Muitos dos professores que forem recrutados nos próximos 10 anos vão estar no sistema durante os próximos 40! (outros irão, como cada vez mais jovens da sua geração, estar uns anos como docente e depois vão fazer outra coisa). Por isso, vale a pena pensar um pouco antes de fazer mais do mesmo para resolver o problema da falta de docentes.
Se ser professor é ser funcionário público com concurso nacional único, sem base ou incentivo ao mérito, não dignificamos a profissão nem atraímos os melhores para o ensino.
Será que o perfil de professor desenhado no século XX se mantém útil para a escola do século XXI? Será que o modo de formar professores no século XX é o mais adequado no século XXI? Será que o que entusiasmava os jovens do século XX a querer ser professor é o mesmo que entusiasma um jovem do século XXI? Será que a cenoura da estabilidade laboral do funcionário público que atraiu tanta gente no século XX é o que atrai os melhores no século XXI? É que o desafio de hoje, ao contrário do que se passou nos anos 70 e 80 do século passado, não é apenas formar professores em número suficiente para as necessidades. Hoje, o desafio é trazer para o ensino alguns dos melhores da sua coorte geracional. Não nos bastam professores. Precisamos de bons professores. Se é possível ser professor com dez a matemática e/ou a português, não dignificamos a profissão nem atraímos os melhores para o ensino. Se só se pode ser professor tomando essa decisão à entrada do ensino superior, não dignificamos a profissão nem atraímos os melhores para o ensino. Se ser professor é ser funcionário público com concurso nacional único, sem base ou incentivo ao mérito, não dignificamos a profissão nem atraímos os melhores para o ensino.
Não sei qual é a solução para estes dois problemas que resultam da leitura do Estado da Educação. Mas penso que é mais ou menos evidente que olhar para os problemas que temos no século XXI com as estruturas e as soluções do século XX provavelmente não resolve nada.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.