Resgate. Destituição. Restauração.

Dar paz a quem ficou com a vida coartada. Com a alma rasgada. Resgatar. Reparar. Abraçar. Amparar. Apoiar, de todas as formas necessárias, possíveis e imagináveis. Sem restrições a priori. Sem posturas defensivas.

Luanda, 1974: a batalha de almofadas [com dois jesuítas], em grande risota. Centro Universitário Padre António Vieira (CUPAV), 1987: “padre António, há céu para os animais?’ – à risada da assembleia em eco à minha pergunta, veio a resposta tão ao seu jeito: ‘Não sei, mas… Ele não disse ‘em casa de Meu Pai há muitas moradas’?” – quem ri por último… Só para citar algumas boas memórias.

Em casa habituámo-nos a partilhar refeições, conversas e dúvidas com jesuítas e padres de outras congregações.

Em Luanda, o convite dos tais jesuítas ao meu pai para ficar em casa deles, conduzindo debaixo de uma saraivada de tiros desde o Hospital onde tinha estado a operar, salvou-lhe a vida. Nessa mesma noite o bairro onde viviam muitos portugueses foi destruído.

Devo-lhes muito. Uma espiritualidade tão rica. Moções interiores O Espírito que vai moldando a forma de ser e de, a partir daí, ver e conviver com o mundo. Anos de Exercícios Espirituais. A meditação. O silêncio de ouro. Aprender a ouvir o Espírito em mim para saber ouvir o outro.

Ao escrever este texto, a cinco meses das Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), que já levantaram tristes dissensões pela existencial dificuldade de audição humana, sinto uma opressão colossal. É difícil encontrar palavras sobre tudo isto. A dor do que foi obscuramente escondido décadas por alguns, dentro da própria Igreja.

No Good Book: “porque nada há escondido que não venha a descobrir-se”.

O excelente Pedro Strecht veio pôr a nu o que era obrigatório.

Caifás: “Não compreendeis que vos interessa que morra um só homem pelo povo e não pereça a Nação inteira!». Até agora o peso da violência nas vítimas, a partir de agora o peso e justo castigo dos algozes.

Em consultório sabemos que há dores que não passam. Como uma pedra atirada à água, cujas ondas vibram até transbordar as margens, assim perdura a dor no âmago. É inimaginável. Chega a ser tão insustentável que pode levar à autodestruição.

Por cada pessoa que sofreu e continua no tempo a sofrer, ontem é o tempo da mudança.

Por cada pessoa que sofreu e continua no tempo a sofrer, ontem é o tempo da mudança.

Resgate. Destituição. Restauração. São três palavras que me rodopiam neste tão escuro tempo.

Dar paz a quem ficou com a vida coartada. Com a alma rasgada. Resgatar. Reparar. Abraçar. Amparar. Apoiar, de todas as formas necessárias, possíveis e imagináveis. Sem restrições a priori. Sem posturas defensivas. Porque não há borracha que apague a história de cada um(a). Porque não há palavras que consolem plenamente.

Destituir. Ontem. Hoje. “Também vós quereis retirar-vos?”, pergunta Jesus aos discípulos depois da debandada dos muitos que não gostaram das exigências do [seu] programa. Ficaram os dispostos a dar a vida.

Ocorre-me a palavra Unforgiven (que dá título a um filme de Clint Eastwood) como adjetivo que sinto justo dar à acção continuada e encoberta do crime. Pedir perdão não resgata da prisão do tempo a pessoa dilacerada. Não é nem pode ser a única consequência para quem tanto mal fez e poderia continuar a fazer.

O pedido de perdão, na figura frágil e doente do Papa [João Paulo II], em 2004, não foi unânime dentro da Igreja. Foi lido por uns como sinal de humilhação perante o Mundo, diferentes Culturas, Sociedades e Religiões, pois demonstraria assumir falhas e imperfeições na estrutura de Poder. Todavia, foi um fundamental pedido de perdão. Mas o perdão não apagava o mal feito ao longo da história. Antes o assumiu.

Sentamo-nos, a nós e aos outros, simultaneamente no banco do réu e na cadeira do Juiz. Incessantemente a concordar ou a discordar sobre o que ouvimos, vemos ou lemos. Em sistemáticas justificações e autojustificações.

Compreender no coração a Igreja que Cristo quer, é compreender a sua incompatibilidade com o poder, na visão do poder que o mundo tem.

Compreender no coração a Igreja que Cristo quer, é compreender a sua incompatibilidade com o poder, na visão do poder que o mundo tem.

“Quem quiser fazer-se grande entre vós, seja vosso servo”. Serviço. Não protagonismo. Compaixão, jamais ofensa. Jamais ofensa. Um verdadeiro Poder, radicalmente diferente e incompatível com “o outro poder”.

Cristo soube em cima de quem assentava a pedra da Igreja. Não escolheu as elites ou os bem-pensantes. Pô-los em causa. O arquétipo não é o padre. É Jesus Cristo.

Uma Igreja que não se revê, e não se põe em causa, contraria o próprio Cristo. Ele veio desinstalar o cristalizado. Foi tal a resistência do poder vigente que morreu na cruz.

Uma miúda comentou comigo se um padre, já falecido, e que citei pela sua admirável obra na Pastoral da Saúde, também “gostaria de crianças”. Traduziu o que vai agora na cabeça de muitos jovens?

Restaurar. Escolher pensar pela própria cabeça. Escolher ser objetivo. Uma ou mil pessoas más que exercem o sacerdócio torna maus todos os padres? Será correto, justo, afirmá-lo?

Por alguns homens abjetos e inomináveis que assumiram indevidamente o título de padre, pagam os homens dispostos a dar a vida que escolheram ser padres, e a quem o mundo deve tanto. É o ditado batido: pelos pecadores pagam os justos. É também por estes últimos que é ontem que os primeiros têm de ser suspensos. E, sobretudo, pelas vítimas passadas e pelas potenciais vítimas futuras que qualquer demora na acção possa ainda vir a deixar acontecer. A patologia mental de alguns impõe, grita, ainda mais cuidados. Extraordinários cuidados. Urgentes cuidados.

Compete aos responsáveis da Igreja em Portugal, às autoridades eclesiásticas portuguesas, fazê-lo já. De forma coerente, inequívoca e sem ambiguidades, para que actuem como Cristo lhes confiou. Há um caminho de espinhos a percorrer, mas há que restaurar um processo de confiança [na Igreja] ou arriscar-se ao descrédito absoluto.

Uma qualquer Ordem profissional que se preze retira a licença ao profissional que deixou de o ser, ou de agir de acordo com os padrões que a profissão exige. Idealmente não a confere a quem não o pode ser. Poder-se-á criar algo como uma Ordem [Vocacional] de Padres? Com tutoria de leigas e leigos que não procurem protagonismo. Com “contrato a prazo” e “à condição”? Assegurando três condições [sine qua non] em tais tutores: pessoas humildes, assertivas e compassivas.

Uma qualquer Ordem profissional que se preze retira a licença ao profissional que deixou de o ser, ou de agir de acordo com os padrões que a profissão exige. Idealmente não a confere a quem não o pode ser. Poder-se-á criar algo como uma Ordem [Vocacional] de Padres? Com tutoria de leigas e leigos que não procurem protagonismo. Com “contrato a prazo” e “à condição”? Assegurando três condições [sine qua non] em tais tutores: pessoas humildes, assertivas e compassivas.

Deus encarnou por Amor. Escolheu viver entre os homens, circunscrevendo-se ao espaço e ao tempo. Tinha o Universo inteiro e misteriosamente “entalou-se” no limite.

Deus deixou-Se tutorar pelos Homens. A lógica ilógica de Deus.

Há pouco tempo dei a Comunhão a um jesuíta. Uma pessoa no meio de tantas. Impus-lhe as cinzas. Um padre que inclina a cabeça e recebe de uma mulher o sinal da cruz: converte-te e acredita no Evangelho. Um padre ao jeito de Cristo.

Eis o tempo de restaurar o projeto de Jesus Cristo para a Sua Igreja. O arquétipo é Jesus Cristo.

Um mundo justo não deve ceder à tentação das generalizações. Faço eco do padre Nuno Ferreira da Silva, que foi mais de 2 décadas capelão do Hospital de S. João no Porto: ‘o dia não termina com a noite, mas é a noite que engendra um novo dia’.

Diz Tomás Halik que, à tarde [que desliza sobre a noite] do Cristianismo, tem de se seguir a manhã. Para a Igreja ser de Cristo é urgente que nasça a manhã.

Bibliografia
Halik, T. A tarde do Cristianismo. (2022). Paulinas.
Mateus, 20, 26 – 28
Marcos, 4, 22
João, 6, 67
João, 11, 49 – 50

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.