João Bénard da Costa dizia que o Padre Manuel Antunes, que acompanhou o grupo de católicos da geração de “O Tempo e o Modo”, foi «um sinal de Deus e de caminhos futuros ou de caminhos do futuro». O jesuíta foi um dos membros da comissão portuguesa do Congresso para a Liberdade da Cultura, que tanta importância teve na preparação da democracia, estando «em combates muito difíceis nos anos 60 e 70, antes dessa Revolução que ele analisou, como mais ninguém, nesse livrinho sublime a que chamou Repensar Portugal»… Também Luís Lindley Cintra disse, de modo muito claro: «Leiam Repensar Portugal… é um livro importantíssimo, quase diria é único pela reflexão e pelo espírito que o anima».
A atualidade da reflexão do Padre Manuel Antunes em Repensar Portugal, põe-nos perante o tema essencial da democracia – quando espreitam, um pouco por toda a parte, as tentações imediatistas e populistas, sob a falsa invocação do mero formalismo do voto. A legitimidade do voto é fundamental, mas tem de ser completada pela mediação permanente nas instituições democráticas. Os cidadãos têm ser representados e de participar, têm de se sentir legitimados. Uma “revolução moral” preocupava o pedagogo da democracia. A justiça, a solidariedade, a liberdade, a honestidade devem orientar a vida das instituições: de modo realista, «renovando as instituições existentes – e não apenas mudando-lhes os nomes – e criando outras que se imponham». Nesse sentido, o Padre Manuel Antunes definia uma agenda, que pressupunha não encarar o Estado como novo Leviatã, produtor, planificador, omnipresente e invasor da esfera privada, pelo que se tornaria imperativo: desburocratizar, desideologizar, desclientelizar e descentralizar. Interiorizar a democracia obrigaria, assim, a assegurar a democracia do Estado e a democracia da sociedade civil.
A atualidade da reflexão do Padre Manuel Antunes em Repensar Portugal, põe-nos perante o tema essencial da democracia – quando espreitam, um pouco por toda a parte, as tentações imediatistas e populistas, sob a falsa invocação do mero formalismo do voto. A legitimidade do voto é fundamental, mas tem de ser completada pela mediação permanente nas instituições democráticas.
E ao Estado competiria revelar-se como consciência crítica da Nação, «na sua realidade de ser coletivo e histórico». Não pode haver democracia sem haver consciência cívica, sem haver instituições representativas e mediadoras – só desse modo poderemos precaver-nos perante os perigos de manipulações e de condicionamentos ilegítimos. Num tempo em que a complexidade é a marca indelével do progresso humano, não podemos cair na tentação de resumir tudo a opções simplificadoras ou a caricaturas da realidade. Veja-se o que acontece quando a via referendária se sobrepõe à ponderação rigorosa das consequências de decisões difíceis – que não podem ficar prisioneiras da tirania do número, da indiferença ou da demagogia… É preciso tempo e reflexão.
E a dimensão cultural? «Sem crítica, a cultura instala-se no uniforme sem inspiração, no escolasticismo sem vontade de essencial, no dogmatismo sem nervo de verdade, e, por isso mesmo, em constante apelo à força do ‘braço secular’. Sem crítica, a querela instala-se por toda a parte: na rua e no palácio, na academia e na caserna, na cidade e no campo, durante a vida e post mortem». E se a instituição a fortalecer é a democracia, o ideal a realizar é o bem comum. O Padre Manuel Antunes compreendia muito bem o género humano e a vida das sociedades – e daí a pertinência e intemporalidade desta reflexão. E em que consiste o bem comum? «Na existência de estruturas e instituições que em determinada fase histórica sirvam ao uso, à dignidade e à dignificação da comunidade; na vontade de solidariedade que une todos os membros dessa comunidade, de forma a que todos participem, na devida proporção, desse objetivo fundamental». A encíclica Pacem in Terris de João XXIII e a constituição Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II são claras nesse sentido.
O Padre Manuel Antunes compreendia muito bem o género humano e a vida das sociedades – e daí a pertinência e intemporalidade desta reflexão
Importará cortar o passo à alternância entre anarquia e tirania – «uma comunidade pode ser feliz sem viver propriamente numa abundância material de lés-a-lés». Em suma, num tempo em que se fala de austeridade, importa insistir na noção de sobriedade, que previne o desperdício e a corrupção, a injustiça e a exclusão, a desigualdade e a fragmentação social – com ensinava o Padre Lebret, cuja obra o Padre Manuel Antunes bem conhecia e que tanto influenciou a encíclica Populorum Progressio do Papa Paulo VI. À democracia e ao bem comum, haverá ainda de juntar um destino a cumprir – a universalidade. Que sentido teria a eminente dignidade humana se não fosse um valor universal? E lembramos o humanismo universalista que nos leva a Santo António de Lisboa ou a Pedro Julião, o Papa João XXI – e lembra a relação incindível entre diversidade e unidade, entre diferença e identidade. “Cada homem é uma exceção” – dizia Kierkegaard – também cada povo!
E não fugimos à regra. «Um país na verdade culto e com cerca de um milénio de história vivida atrás de si – e que história –, só demitindo-se por completo e por completo desistindo de existir como um animal esgotado que se deita para morrer é que deixará de contar no concerto dos povos. Antes não».
Artigo inicialmente publicado em Voz da verdade
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.