Demasiadas vezes confunde-se o ato de educar – esclarecendo desde já que não me estou a referir somente ao contexto escolar, mas também (e talvez até mais) às oportunidades de (co)educação que o quotidiano das nossas relações nos proporciona, em especial com as pessoas que nos são mais próximas – com o ensinar um determinado conjunto de regras e a importância de as cumprir. Porquê? Porque sim… Não me estou a insurgir contra o facto de existirem regras, mas sim contra o torná-las o princípio e o fim do ato educativo.
Sendo que, mesmo para quem não pensa assim, é relativamente fácil escorregar nesta “casca de banana”, sobretudo nos momentos em que andamos mais cansados e menos iluminados – eu que o diga, por exemplo, na relação de (co)educação com a minha filha e com o meu filho – parece-me fundamental, por um lado, desmontar esta “visão regrista” e, por outro, dar força e ânimo às visões educativas focadas na descoberta, no entendimento e no sentido das coisas.
Para tal, proponho-lhe que façamos uma espécie de caminho conjunto. Um caminho trilhado a partir da busca de resposta a algumas questões. Está disponível para este pequeno desafio? Espero que sim.
A primeira questão é a seguinte: vivemos numa sociedade justa?
Não responda já. Reflita… Questione a própria questão… “Vivemos” – quem é este “nós”? Todas, mesmo todas, as pessoas? A maioria? Algumas? “Sociedade” – que sociedade? A portuguesa? A europeia? A global? A do local onde vivo? “Justa” – o que é isso? É a justiça dos tribunais? Outra(s) justiça(s)? Como se mede(m)?
Complexo? De um ponto de vista, sim, muito complexo mesmo; de outro ponto de vista, talvez não tanto. Se tivesse mesmo de responder e só o pudesse fazer através de um “sim” ou de um “não”, o que responderia?… Eu responderia “não”. Independentemente das questões colocadas acima, os acontecimentos e a realidade oferecem-me este “não” a toda a hora. Não vou elencar aqui o rol deprimente e desolador de números que evidenciam isso mesmo; também não vou deixar de dar (extrema) importância ao muito de bom e de consolador que este mundo tem; mas confesso-vos que os frutos da injustiça – a violência, a destruição, a opressão, a miséria, a solidão, o sofrimento, o desespero – continuam bem presentes no meu dia-a-dia, pelo que observo, pelo que ouço, pelo que leio, pelo que vou vivenciando. E, como pelos frutos se conhece a árvore, responderia “não” sem pestanejar. Sem pestanejar, mas a lamentar.
Nesta altura, ou se identificou comigo ou, de alguma forma, rejeita esta resposta, provavelmente considerando-a demasiado pessimista e absolutizadora. Neste último caso, mesmo correndo o risco de já não estar a ler, gostava de lhe propor uma nova questão: e se acrescentasse a possibilidade de responder “parcialmente”, isso ajudaria? Ou seja: vivemos numa sociedade justa? Resposta: parcialmente. Parece-me uma resposta aceitável, provavelmente, até verdadeira. Mas fica-me uma inquietação fundamental: então, quando falamos de justiça – tal como, por exemplo, quando falamos de dignidade – este “parcialmente” não equivale, na realidade, a um “não”? Para quem se identifica com esta utopia e inquietude da busca de um “mais”, a noção de uma justiça cumprida apenas parcialmente já não é, em si mesmo, o reconhecimento – intolerável – da injustiça a sobrepor-se à justiça?
Quer respondamos “não” ou “parcialmente”, penso que numa coisa estamos de acordo: vivemos numa sociedade injusta (porque não totalmente justa). Podemos discordar no grau, mas o absoluto é inegável. Partindo desta conclusão, proponho uma última questão: acha que esta situação se deve ao facto de as pessoas não cumprirem as regras ou, pelo contrário, se deve às próprias regras e ao seu cumprimento?
Procure não ceder à tentação de responder epidermicamente, sem procurar parar e refletir. Pense na história humana… Pense nas diferentes realidades da atualidade… Talvez, então, a resposta seja mesmo uma espécie de não-resposta; alguma coisa parecida com “depende”. Por exemplo, a discriminação, perseguição e genocídio dos povos cigano e judeu durante o regime nazi foi feita com base no cumprimento das regras… Por outro lado, os vários casos de corrupção que assolam o nosso país fundam-se no incumprimento das regras… Mas o desperdício diário de toneladas de alimentos por supostas questões de higiene e saúde pública num país onde continuam a existir pessoas a passar fome é mandatado pelas regras… Sendo que as centenas de mortes que todos os anos acontecem em território nacional por via de acidentes de viação se devem, na sua esmagadora maioria, a algum tipo de incumprimento das regras… Todavia, nos E.U.A. separam-se de forma brutal e definitiva filhos amados de pais desesperados cumprindo-se as regras que visam combater a imigração irregular…
Os exemplos seriam infinitos, mas o “depende” desta resposta assemelha-se ao “parcialmente” da resposta anterior e, assim, absolutiza-se: é um facto que inúmeras e demasiadas vezes a falta de justiça advém do cumprimento de regras injustas, impostas de forma repressiva e/ou manipuladora por parte de pessoas e coletivos que não têm na justiça o seu foco, bem pelo contrário. A nossa memória histórica exemplifica-o repetidamente, a nossa realidade atual continua a comprová-lo.
Chegados a este ponto – vivemos numa sociedade injusta e o cumprimento das regras estabelecidas não é necessariamente o garante da inversão desta situação e, em muitos casos, constitui-se mesmo como a origem e motor desse estado de injustiça – e se enquadrarmos a educação, no seu sentido lato e socialmente abrangente, enquanto processo de aprendizagem e capacitação com vista a que os indivíduos e os coletivos, na sua reflexão e ação, integrem a justiça, o cuidado e a solidariedade como fundamentais, então, no mundo em que vivemos, no aqui e agora, educar implica ir muito para além do ensino do mero cumprimento das regras estabelecidas.
Implica, necessariamente, educar para o pensamento crítico que procura ler os acontecimentos, as atitudes e os comportamentos (incluindo os próprios) à luz duma ética de justiça, dignidade e cuidado; e que, a partir dessa leitura, vai identificando as forças pessoais e sociais de emancipação e libertação, bem como as forças pessoais e sociais de submissão e manipulação. Implica desenvolver a liberdade pessoal e coletiva necessária para esse questionamento de si mesmo, das relações e do mundo. Implica dar espaço e tempo para o desenvolvimento da criatividade, a arma mais poderosa para a ação face a essas forças de submissão e manipulação, sobretudo, quando elas são “a regra”.
É por aqui que nos andamos a (co)educar?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.