Quem nos inspira?

Há 30 anos, duas mulheres e seis homens foram mortos em El Salvador por perseverarem no anúncio do Evangelho. Inspirados no seu exemplo, muitos alunos dos jesuítas começaram a despertar para a injustiça social, pondo a sua fé em ação.

Na noite de 16 de novembro de 1989, um batalhão das forças armadas de El Salvador cercou a comunidade jesuíta da Universidade Centroamericana José Simeón Cañas (UCA) e matou violentamente seis padres jesuítas, a sua empregada e a sua filha, que naquela noite preferiram ficar com a comunidade, por questões de segurança. Ignacio Ellacuría, SJ, Ignacio Martín-Baró, SJ, Segundo Montes, SJ, Juan Ramón Moreno, SJ, Amando López, SJ, Joaquín López y López, SJ, Elba Ramos e Celina Ramos são os nomes dos oito mártires da UCA.

Curiosamente, 19 dos 26 soldados salvadorenhos receberam treino militar dos EUA, o que levou o então jesuíta Bob Holstein a perguntar-se como é que a morte destes mártires poderia servir de inspiração para os alunos dos colégios e universidades dos jesuítas nos EUA e no mundo inteiro, no que se refere à justiça social.

Assim, nasceu o Ignatian Family Teach-in for Justice, um tempo em que, inspirados pelo martírio deste homens e mulheres, os alunos e educadores dos colégios e universidades da Companhia de Jesus podiam refletir e, depois de regressados a casa, comprometer-se com a denúncia e mudança de estruturas injustas na sociedade.

No início dos anos 1990, alguns alunos começaram a juntar-se em vigílias de oração, até que, em 1997, montaram uma tenda em Columbus, Georgia. O número de alunos crescia a cada ano até que, em 2006, a tenda se teve de mudar para um centro de convenções, no qual mais de 3000 pessoas celebraram a Missa final.

A linguagem inaciana era-lhes familiar, embora em muitas línguas diferentes; os valores eram comuns, embora expressados de formas distintas; a fé era uma só, embora posta em ação ao ritmo e modo próprios de se ser adolescente noutros contextos.

A denúncia da implicação americana na formação de soldados de outros países deixou de ser o foco, uma vez que a injustiça como implicação estrutural na sociedade tem muitos mais rostos. Assim, sempre inspirados pelos mártires da UCA e no imaginário da tenda como lugar de encontro, diálogo e promoção da fé e da justiça, o Teach-in mudou-se, em 2010, para Washington e dedicou-se não só à denúncia de injustiças sociais, mas também à formação dos alunos para conversarem com os representantes dos seus Estados no Capitólio e exigirem mudanças em estruturas claramente injustas: temas pró-vida, defesa de imigrantes e refugiados, promoção da mulher, denúncia de comportamentos racistas, homofóbicos ou misóginos e promoção de políticas de combate às alterações climáticas e sobre-exploração de recursos naturais.

Nos dias 16 e 17 de novembro, voltou a realizar-se este encontro anual da família inaciana, celebrando de um modo especial o 30º aniversário do martírio na UCA. Foram dois dias assentes na solidariedade e justiça social, tempo para aprender, refletir e rezar, sob o tema Radical Hope, Prophetic Action (Esperança Radical, Ação Profética). Tempo para se deixar desafiar pela realidade dos mais desfavorecidos, para se deixar inspirar por outros homens e mulheres, que vivem os martírios dos tempos presentes. Tempo para se dar conta das injustiças que ainda tolhem o futuro de tantos adolescentes.

Pela primeira vez, cinco alunos portugueses da OFICINA cruzaram o Atlântico e foram ao Teach-in. Numa tarde, um deles – aluno do 12º ano – comovido, partilhava que tinha conhecido um rapaz mexicano da sua idade, que foi para os EUA com quatro anos. Era um Dreamer (o Dream Act é uma proposta de lei nos EUA que garante a cidadania a imigrantes que entraram no país como crianças, mas não têm estatuto legal. Acrónimo para Development, Relief, and Education for Alien Minors Act). O Aluno português deixou que a história inspiradora daquele rapaz lhe entrasse pelo coração e lhe trespassasse a consciência a modo de inquietação.

Noutro dia, uma Aluna não podia deixar de repetir a admiração que sentiu enquanto escutava o testemunho da Irmã Peggy O’Neill, SC, que dedicou os últimos trinta anos da sua vida ao povo salvadorenho, promovendo a paz através da arte e da cultura.

Estes cinco Alunos passam muitas horas das suas semanas num Colégio da Companhia de Jesus, em Portugal. Sabem quem é Santo Inácio, quem são os jesuítas, conhecem a história da Companhia de Jesus. Têm no Colégio exemplos de entrega e serviço, outros colegas e educadores que admiram. E, cada um deles ao seu modo único, uma amizade com Jesus que os orienta. Mas nunca tinham estado tão longe da sua zona de conforto, da sua língua, da sua família, da sua cultura. No entanto, a linguagem inaciana era-lhes familiar, embora em muitas línguas diferentes; os valores eram comuns, embora expressados de formas distintas; a fé era uma só, embora posta em ação ao ritmo e modo próprios de se ser adolescente noutros contextos.

Há trinta anos, duas mulheres e seis homens foram mortos em El Salvador por perseverarem no anúncio do Evangelho. O marido de Elba Ramos e pai de Celina Ramos, Obdulio, plantou oito roseiras no jardim da comunidade dos jesuítas: seis vermelhas, para os padres jesuítas e duas amarelas, para a sua esposa e filha. Ainda hoje, o roseiral permanece e dá flor.

Inspirados no exemplo dos mártires da UCA, milhares de alunos dos jesuítas começaram a despertar a sua consciência para questões de injustiça social e a promover a justiça pondo a sua fé em ação. Este ano, foram cinco os portugueses que foram até aos terrenos do Teach-in para deixar semear neles o que aquelas roseiras significam. Que, de volta à terra e à vida, deixem que a semente cresça e as suas flores inspirem quantos passem por elas.

 

Nota: A fotografia que ilustra o artigo é do jardim de homenagem aos mártires de El Salvador plantado no lugar do seu martírio. © https://caliescribe.com/es/columnistas/2012/10/06/3399-rosas-nuestro-jardin

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.