Quem é São João Paulo II para o Papa Francisco

Personagem decisivo na queda do muro de Berlim, segundo Francisco, João Paulo II entrega-nos a herança das pontes que ainda podemos construir.

Recentemente em Itália foi apresentado, por Luigi Maria Epicoco, um livro que nos permite compreender a riqueza da relação que o Papa Francisco teve, e tem, com o seu predecessor santo, João Paulo II. Trata-se de San Giovanni Paolo Magno (San Paolo 2020). A obra divide-se em cinco capítulos que nos levam a percorrer os períodos fundamentais da vida do Papa Wojtyla. Cada capítulo termina com um colóquio familiar entre o P. Epicoco e o Sumo Pontífice em torno desta figura marcante da Igreja do novo milénio.

Como escreve Luigi Epicoco no Prefácio, nestes diálogos informais transparece uma figura “poliédrica” de João Paulo II (cf. p. 5). A simpatia que Bergoglio por ele nutre, desde o momento da eleição em 1978, liga-se à admiração espectável que sentimos por alguém tanto dado à filosofia como aos desportos de montanha (cf. pp. 19-20); admiração por quem é capaz de se maravilhar tanto com a riqueza do rosário popular (cf. p. 26), como com obras eruditas, muitas vezes reservadas aos especialistas. No entanto, é a “normalidade escondida” (cf. p. 122) deste homem simples que nos mostra como a santidade cristã é possível a todos, muito embora se trate de um caminho exigente. E Wojtyla sempre soube, pela carne, o que significa viver essa exigência do Evangelho. Para Francisco, São João Paulo II foi “um homem livre até ao fim”, um Homem cuja liberdade consiste em ser fiel a uma consciência que procura acima de tudo amar Deus, a Sua Verdade e Justiça, sem que por isso as coisas passageiras deste mundo se tornem desprezíveis. Mesmo se o fim do seu pontificado, e da sua vida, terá sido extremamente doloroso, a mensagem do Papa Wojtyla sempre foi a da alegria do Evangelho. Marca do espírito de João Paulo II, a célebre exortação “Não tenhais medo” é completada por Francisco: “não tenhais medo da alegria” (cf. pp. 119-121).

É belo perceber como o filme alemão de 1959, Die Brücke (“A ponte”) – cujo enredo se desenvolve num cenário de destruição e de divisão ideológica, próprio do pós-guerra europeu –, leva Francisco a lembrar-se da figura de João Paulo II (cf. pp. 49-50). De facto, movido por uma profunda fé evangélica, Karol Wojtyla teve a coragem e a prudência necessárias para reagir em prol do Reino no contexto de regimes hostis, injustos e profundamente desumanos. Ao se confrontar, pelas contingências da História, tanto com o nazismo como com o comunismo totalitário, mantendo-se ao mesmo tempo fiel aos princípios de Cristo, João Paulo II acabou por promover os direitos inalienáveis da pessoa humana (cf. p. 83).

Personagem decisivo na queda do muro de Berlim, segundo Francisco, João Paulo II entrega-nos a herança das pontes que ainda podemos construir. Nesse sentido, Francisco leva-nos a recordar o “espírito de Assis”, de diálogo inter-religioso, próprio do seu predecessor canonizado (cf. p. 85). Para o atual Papa, o documento, por vezes tido por polémico, sobre a Fraternidade Humana, a Paz Mundial e a convivência comum, assinado conjuntamente, em 2019, com o Grão Imame de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, surge na esteira de João Paulo II.

O magistério de João Paulo II está, segundo o Papa Francisco, radicado no pontificado de Paulo VI, sobretudo no documento de Puebla e na Evangelii Nuntiandi: trata-se, portanto, da missão de anunciar o Evangelho inculturando-o nas diversas culturas que compõem o mundo contemporâneo. As múltiplas faces deste Papa que foi santo permitem que vislumbremos na sua figura o desejo de inculturação e a firmeza contra as derivas de uma certa mentalidade contemporânea. Por um lado, é preciso fazer pontes com as diversas culturas e esferas da sociedade de forma a inculturar o Evangelho, não por desejo da novidade, mas pelo anseio de um anúncio autêntico e eficaz (cf. pp. 96-97). Por outro lado, a mesma inculturação exige que sejamos coerentes com Cristo e os seus valores de vida. Nesse contexto, é interessante notar como Francisco se apropria da crítica dos seus predecessores, seja contra o perigo do “relativismo na cultura contemporânea”, seja contra a hodierna “teoria do gender”.

Em prol da complementaridade da criação, devemos aprender a acolher positivamente a diferença dos outros e a respeitar o que nos é dado: em vez de impor uma ideia, uma ideologia, à realidade, realizamo-nos enquanto pessoas que aceitam e acolhem a natureza, o outro e a si mesmas, no seu próprio corpo e na sua própria história (cf. pp. 85, 103-104). Vislumbra-se, assim, uma ecologia integral do mundo e da pessoa humana.

Por fim, o livro ainda nos permite desmistificar certas oposições ou dualismos excessivamente radicais entre o atual pontificado e os que o precederam. No que ao sacerdócio diz respeito, o Papa Francisco volta a afirmar a sua “sintonia total com o pensamento de São João Paulo II”, pois o celibato é um “dom”, uma “graça”, e nunca “um limite” (cf. pp. 74-75, 93). Também se torna claro que, para Francisco, Ratzinger foi a escolha certa em 2005 (cf. p. 21).

O apreço por São João Paulo II, por Bento XVI, por Paulo VI, enfim pelos seus predecessores, mostra o quão enraizado está Francisco na Tradição. Segundo o Papa, a Tradição “cresce” e só é “garantia do futuro” se não se fechar nas suas “cinzas”. A Tradição é como uma “raiz”, diz-nos Francisco (cf. p. 90). Por isso, mais do que olhar para trás, a ligação aos seus predecessores inspira-o a seguir em frente, no caminho da Tradição viva da Igreja, discernindo e respondendo aos anseios dos homens e das mulheres de hoje.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.