“Quantos horrores a necessidade premente e a pobreza inspiram!”: a memória da peste de Atenas

Passados 2500 anos, quando, numa "hybris" colectiva, se pensava que a ciência e a tecnologia tinham sido capazes de encontrar formas imbatíveis de dominar a Natureza, a realidade veio comprovar, de novo, a fragilidade da nossa condição.

Há quase dois meses, quando os efeitos do novo Coronavírus no Reino Unido ainda estavam a começar, a famosa classicista Mary Beard concluía a sua habitual coluna do Times Literary Supplement com um apelo enfático: “I urge us all to remember that western literature began with INFECTION [sic]”.

O propósito mais imediato da professora de Cambridge era sublinhar a necessidade de não concentrar a reflexão sobre exemplos antigos de epidemia apenas no impressionante relato histórico de Tucídides sobre o surto do verão de 430 a.C. em Atenas (História da Guerra do Peloponeso, 2.47.2-2.54.5); e de ter em devida conta o primigénio registo épico de Homero sobre a mítica peste junto às muralhas de Tróia
(Ilíada, 1, 50-100). E a razão para isso é consciencializarmo-nos de que este primeiro texto literário ocidental, que logrou sobreviver não apenas às suas vetustas raízes orais – superando, a par da Odisseia, outras linhas temáticas do ciclo troiano e de outros ciclos mitológicos – , mas a todas as vicissitudes históricas até à contemporaneidade, tem como ponto de partida a evidência da fragilidade humana perante as doenças contagiosas. E não será esta atenção ao “bicho da terra vil e tão pequeno” uma das razões da sua perene relevância e popularidade?

 

A peste de Atenas é, de facto, um exemplo obrigatório, e lá iremos. Contudo, como a Ilíada documenta em primeira mão, muitas foram as manifestações de pestilência na Antiguidade, todas unidas pela dificuldade de explicar as suas origens e, sobretudo, pela impossibilidade de encontrar uma cura – um absoluto desamparo que, em vista das presentes circunstâncias, não deixa de nos causar calafrios. Não surpreende, por isso, que, nos primeiros tempos, os deuses, imortais e caprichosos, fossem vistos como os controladores dessa arma biológica de destruição massiva; e que os erros dos humanos – ou pelo menos dos seus líderes, cegos perante a realidade e incapazes de controlar as paixões – justificassem o seu desencadear. A aleatoridade das epidemias era mais um exemplo da vulnerabilidade e da injustiça inerentes à condição de mortal.

 

O primeiro texto literário ocidental, que logrou sobreviver não apenas às suas vetustas raízes orais , mas a todas as vicissitudes históricas até à contemporaneidade, tem como ponto de partida a evidência da fragilidade humana perante as doenças contagiosas.

O relato homérico reflecte esses traços essenciais, articulando-os com o tema central da Ilíada: a ira de Aquiles. No início de tudo esteve a sacrílega recusa de Agamémnon, comandante das forças gregas, de devolver a filha de um sacerdote de Apolo, seu quinhão num saque brutal. Tal inflexibilidade arrogante despertou a ira assassina do deus. A peste – λοιμὸς –, que atingiu primeiro os animais, não infectou o culpado, mas causou grandes baixas entre os soldados, enfraquecendo as perspectivas de sucesso da campanha. Mesmo assim, Agamémnon só reagiu na sequência da intervenção de Aquiles, com quem mantinha uma latente luta pelo poder. Depois de o adivinho Calcas denunciar – garantida a protecção de Aquiles contra a fúria do visado – a responsabilidade do rei de Argos, este devolveu a jovem, mas vingou-se de imediato, tomando posse da cativa atribuída ao filho de Tétis. Humilhado com esta apropriação, Aquiles, que era para mais o conquistador do saque a que pertenciam ambas as jovens, foi dominado pela ira e recusou-se a voltar a combater, o que, qual segunda epidemia, ocasionou mais um elevado contingente de mortes colaterais.

 

Com a sua génese perdida nas brumas do tempo, é impossível associar a peste da Ilíada com um episódio histórico específico. Já a celebrada tragédia sofocleana Édipo rei, estreada em 429 a.C., pode ser relacionada com o longo surto que assolou Atenas a partir do verão de 430, objecto do marcante relato de Tucídides. No entanto, Sófocles optou por transportar a experiência para a cidade de Tebas, inimiga
encarniçada de Atenas, por forma a enquadrá-la no ciclo mítico particularmente violento dos Labdácidas; e, além da elevada mortalidade, atribuiu à pestilência traços mais compatíveis com um castigo divino, como a esterilidade geral, que afecta as colheitas, os animais e as mulheres. Como em Homero, uma peste é lançada por um deus irritado, para castigar todo o povo por um crime individual, curiosamente já com
décadas – o assassínio do anterior rei, o aliás nada recomendável Laio; também aqui, a família real parece imune aos seus efeitos, embora Édipo se mostre muito mais solícito com o bem-estar dos seus súbditos, ao procurar o parecer do oráculo de Delfos. Todavia, o rei, vítima da fatalidade e de más escolhas perante ela, manifesta de início uma cegueira intelectual que o leva a amaldiçoar o assassino de Laio e, depois, a recusar-se a ouvir as explicações de Tirésias, que tentara prevenir a escalada autodestrutiva da sua hybris. Mantém-se, portanto, a intolerância para com o mensageiro da desgraça.

 

A experiência traumática da peste não foi aproveitada para uma reflexão profunda que permitisse reforçar a coesão da cidade, pois faltavam líderes com a estatura de Péricles, e a democracia ficou à mercê de demagogos, que manipulavam o povo em função de interesses imediatos.

A obra de Sófocles (c. 497/6 – 406/5 a.C.) integra-se ainda na mundividência tradicional, que vê no apaziguamento dos deuses a única forma de conter o sofrimento humano. Por isso, o povo de Tebas desdobra-se em súplicas e sacrifícios, e o seu rei pede orientações a Apolo. A Atenas que Tucídides (c.  460 – c.  400 a.C.) nos descreve é totalmente diferente, em virtude do ponto de vista do historiador: ele
próprio um sobrevivente, importa-lhe mostrar, a partir do seu “vi, claramente visto”, como foi a peste que assolou a cidade precisamente quando as forças espartanas iniciavam o segundo round de pilhagens na Ática; e destacar, acima de tudo, as terríveis consequências que ela teve na coesão social da Pólis.
Não há nenhum líder tirânico, protegido na sua cidadela, a causar o surto com uma hybris egocêntrica; nem a voz de Apolo Délfico é invocada para esclarecer iras antigas ou recentes: a cidade vive o auge da democracia e, sintomaticamente, o seu líder Péricles, sempre posto em causa pelas movimentações dos demagogos e as oscilações das assembleias populares, foi uma das vítimas da epidemia, juntamente com os seus filhos mais velhos. No entanto, nem ele é nomeado, pois o historiador optou por apresentar os
habitantes da cidade como um colectivo anónimo, cujo total desamparo e desesperança levam à desumanização, através da dissolução dos traços mais definidores da sua identidade. É precisamente esta tragédia humana que torna o texto tão relevante para os dias de hoje. Acompanhemos o desenvolvimento de alguns tópicos.

 

A ideia inicial de Tucídides é precisamente que a abrangência e mortalidade da peste foram incomparáveis, e que nenhuma ajuda, terrena ou divina, se lhe opôs: a incapacidade e vulnerabilidade dos médicos perante este desafio era total; nenhuma outra arte humana se revelou útil; os deuses deixaram de ser vistos como ajuda ou temidos, pois mantiveram-se silenciosos, e os seus templos deixaram de ser vistos como espaços sagrados.

 

Não foi possível determinar susceptibilidades favorecedoras desta doença, que terá vindo da Etiópia e subido pelo Egipto em direcção a Atenas. A sua entrada pelo Pireu sugere uma provável disseminação via comércio marítimo, o que sugere o tema, tão pertinente nos nossos dias, das consequências da globalização. Aliás, as pestes mais famosas e impactantes do império romano do ocidente – no tempo do famoso médico Galeno (entre 165 e 180 e com surtos posteriores) –, e depois já no do Oriente – no
tempo de Justiniano (541-542) –, reforçaram a ideia da disseminação através de exércitos em movimento. Tal como no caso ateniense, os estudiosos tendem a considerar que o enfraquecimento dos recursos humanos e suas consequências no âmbito produtivo e defensivo potenciaram a decadência de impérios já altamente pressionados.

 

Tucídides dedica muitas linhas à descrição dos sintomas da misteriosa doença – cuja identificação continua a ser discutida, embora se aponte para uma forma primitiva do tifo exantemático –, numa sequência cronológica, que acaba por corresponder à progressão vertical descendente da doença no corpo das vítimas Apesar desta sistematização, o historiador assinala a variabilidade individual, que se reflecte no efeito diferenciado e imprevisível dos remédios, em geral ineficientes. Além disso, os que sobreviviam podiam ficar com sequelas graves. Mas o que mais afectou Tucídides foi o modo como os atenienses lidaram com o tratamento dos infectados, a gestão da sua vida e a sepultura dos mortos. A consciência da transmissão interpessoal criou um drama insolúvel: quem decidia honrar as obrigações sociais e visitava os familiares ou amigos doentes, morria pelo contágio; quem optava por isolar-se, morria de abandono e desamparo. Desprovidos de esperança terrena e de receio do além, muitos dos vivos tentavam aproveitar todos os minutos de vida, gastando os bens e fazendo às claras o que antes escondiam; e não se importavam de violar as leis, pois estavam certos de que morreriam antes do castigo. A superpopulação de Atenas provocada pela guerra piorou a situação: transformados em sem-abrigo ou instalados em casas pequenas e abafadas, os camponeses dos arredores agonizavam nas ruas juntamente com os atenienses,
lançando-se aos fontanários para aplacarem a febre e a sede ardentes. O desespero e o desânimo imediato dos que descobriam estar contagiados impressionou profundamente o historiador. Contudo, Tucídides destaca um aspecto positivo: os poucos que já tinham vencido a doença, mesmo não havendo certeza quanto à imunização, eram os mais compassivos, pois tinham também vencido o medo.

 

O desespero e o desânimo imediato dos que descobriam estar contagiados impressionou profundamente o historiador. Contudo, Tucídides destaca um aspecto positivo: os poucos que já tinham vencido a doença, mesmo não havendo certeza quanto à imunização, eram os mais compassivos, pois tinham também vencido o medo.

 

Poucas coisas são mais sintomáticas da falta de liderança, da redução da população e dissolução social do que o desrespeito pelos costumes relativos aos mortos, tema que Sófocles analisara cerca de uma década antes na sua Antígona. Os cadáveres, estranhamente intocados pelos necrófagos, acumulavam-se nos templos e nas ruas, em desrespeito pela dignidade dos próprios, pela integridade dos vivos e pelas leis
dos deuses. A ânsia de os fazer desaparecer a qualquer custo levava muitos a tentar cremá-los nas piras preparadas para outrem, ou até a atirá-los simplesmente para cima de outro corpo já a ser consumido pelo fogo. Séculos depois, o poeta romano Lucrécio (c. 99 a. C – c. 55 a. C), muito impressionado com o relato de Tucídides, seguiu-o de perto nos versos com que exemplifica, através do surto ateniense, a tese
de que as epidemias eram provocadas pela presença de múltiplos germes (semina) no ar; e acrescentou ao relato dos esforços de cremar os entes queridos o pormenor de que ocorreram lutas sangrentas entre familiares que disputavam a possibilidade de honrar os seus mortos. E conclui, emocionado: “Quantos horrores a necessidade premente e a pobreza inspiram!” (De rerum natura, 6, 1282).

 

A leitura desta narrativa de Tucídides faz suspeitar que a desmoralização generalizada e a enorme perda de recursos humanos devem ter prejudicado o sucesso de Atenas na Guerra do Peloponeso. Nos dias de hoje, os historiadores salientam as consequências do aumento das restrições à admissão de metecos como
cidadãos na sequência da peste como um factor importante na falta de compensação do declínio populacional. Ainda que não se tenha referido a esta questão, Tucídides afirma noutros capítulos que a ruína da orgulhosa cidade foi directamente provocada pelas acções dos cidadãos. A experiência traumática da peste não foi aproveitada para uma reflexão profunda que permitisse reforçar a coesão da cidade, pois faltavam líderes com a estatura de Péricles, e a democracia ficou à mercê de demagogos, que
manipulavam o povo em função de interesses imediatos. As múltiplas oscilações estratégicas e a constante busca de culpados, com o seu cortejo de exílios e execuções, seguidos de arrependimentos e retaliações, fez com que a cidade se derrotasse a si própria.

 

Passados 2500 anos, quando, numa hybris colectiva, se pensava que a ciência e a tecnologia tinham sido capazes de encontrar formas imbatíveis de dominar a Natureza e resistir a tudo, a realidade veio comprovar, de novo, a fragilidade mortal da nossa condição. Sendo certo que, além dos avanços culturais, as infraestruturas e serviços tornaram mais fácil manter as sociedades a funcionar, sinais preocupantes podem encontrar-se, aqui e ali. O egoísmo destruidor da coesão social está patente no ostracismo votado aos que podem transportar o vírus, no desrespeito pelas normas de isolamento ou nos episódios de açambarcamento, mas também na tentativa demagógica de impor um pensamento único. Oxalá o respeito pela dignidade de todos e o amor ao próximo sejam os princípios dominantes desta nossa experiência. Não sejamos os artífices da nossa própria derrota.

Fotografia de Hans Reniers – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.