As vidas dos outros – de quase todos os outros – desenrolam-se sob um fino, mas persistente véu de silêncio. Quem são estes que todos os dias vemos, estes poucos ou muitos homens e mulheres sem nome com os quais talvez cruzemos um olhar, que se sentam ao nosso lado no metro ou no comboio, que nos atendem num restaurante ou numa repartição? Que desejos, que amores têm, que angústias, medos e tristezas lhes tolhem os passos? Quem chora os seus infortúnios, quem chorará a sua morte? São uma “turba de gente” sobre a qual nada ou quase nada sabemos, cujas existências são paisagem anónima do que fazemos, pensamos, dizemos: vidas inteiras que nunca se singularizam para nós.
Um dos últimos livros do escritor austríaco Robert Seethaler é, por isso, pelo menos para este leitor, um belíssimo exercício de contracorrente. Uma vida inteira (título original: Ein ganzes Leben) foi publicado em 2014 e saiu em tradução portuguesa em 2019. Nele se conta a vida toda de Andreas Egger, que se desenrolou numa pequena aldeia nos Alpes austríacos. Chega aí com quatro anos, tendo sido enviado pela mãe a um parente que recebe o rapaz mais por ganância que por afeto. Este parente, agricultor naquelas agrestes paragens, é um homem colérico e violento, que, num acesso de fúria, acaba por deixar Andreas coxo para o resto da vida. A vida corre, Andreas cresce e acaba por deixar a casa do tio e começar a viver sozinho. É aí na aldeia e nas montanhas circundantes que encontra trabalho, amor e também tragédia, desgostos e sofrimento. Aí envelhece e adapta-se às mudanças do quotidiano da aldeia e do seu próprio corpo, permanecendo simultaneamente um entre os aldeões e original, quase excêntrico na sua persistente fidelidade a si próprio, ao seu grande amor e àquele lugar-casa. Morre e esta é a sua inteira vida.
É precisamente esta feliz resistência a tudo “psicologizar” que faz deste romance um precioso “tratado” sobre a compaixão.
É difícil encontrar palavras justas para descrever a beleza delicada deste pequeno livro. Robert Seethaler conta a vida de Andreas como quem observa demoradamente o fluir de um rio ou a dança das folhas numa árvore, sem nunca se impor, renunciando à omnisciência de narrador (os estados psicológicos de Andreas são-nos apenas esboçados) e oferecendo-nos apenas o silencioso bater das vagas do tempo naquela existência singular. Não se dão razões, nem se pede ao protagonista que nos diga a cada passo ao que anda. Tudo é delicadamente exterior, sendo, ainda assim, profundamente íntimo, como quando observamos alguém que dorme.
É precisamente esta feliz resistência a tudo “psicologizar” que faz deste romance um precioso “tratado” sobre a compaixão. O nosso legítimo afã de conhecer as razões dos outros, de tudo perceber para poder “com razão” compadecer-se dos seus infortúnios e perdoar os seus erros e crimes, parece inclinar-nos a conceber a compaixão como o resultado de um raciocínio, ou de uma iluminação, que nos “esclarece” acerca do outro. Ora, de Andreas nunca conhecemos as razões que o movem e é-nos dado apenas um acesso limitado ao que sente e pensa, e, no entanto, não podemos evitar a experiência fundamental do reconhecimento. A sua vida é a vida inteira de cada um de nós e de cada um daqueles outros com quem nos cruzamos. E é-o não porque Andreas seja uma personagem-tipo, mas na sua irredutível singularidade. A compaixão é, na sua visceralidade, a virtude do singular num mundo massificado e “racionalizado”. O pequeno livro de Robert Seethaler é um subtil convite a descomplicar: o rosto, os gestos, as palavras do outro são, mesmo se impenetráveis, contraditórios e até ofensivos, um recordatório perene da sua humanidade e essa é a verdade primeira que não cabe esquecer.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.