Nota prévia: neste texto não vou falar do novo coronavírus e seus efeitos, mas talvez se possa encontrar nele alguma inspiração sobre o que se poderá fazer/propor nestes tempos de confinamento doméstico.
Há cerca de duas semanas fui surpreendido com o fim do programa O Fio da Meada. Para quem não conhece, passava na Antena 1 de segunda a sexta, por volta das 8h40, e autoapresentava-se da seguinte forma: “crónicas matinais com pistas que alimentam uma reflexão sobre o país e o mundo”. As crónicas duravam cerca de três minutos e cada dia tinha seu cronista. Era, sem dúvida, o meu programa preferido no meio de toda a uniformidade e ruído dos vários programas da manhã que dominam a nossa rádio atual.
Como disse, fui surpreendido. Pelos vistos, os e as cronistas também…. Calhou naquela sexta feira ligar o rádio exatamente quando estava a começar a última crónica de O Fio da Meada, com assinatura de Alexandra Lucas Coelho, a cronista das sextas feiras. Num misto de surpresa e indignação, a cronista falou diretamente sobre esta opção da Direção de Programas da rádio pública e enquadrou-a naquilo a que chamou de “diminuir a palavra”. Diminuir a palavra, em quantidade e complexidade…. Vale mesmo a pena ouvir.
A indignação e sentido de resistência da cronista e escritora tocou-me. Identifiquei-me. Expressou por palavras aquilo que muitas vezes vou sentindo. Esclareceu-me e deu-me força. Também eu, num outro nível, sinto indignação perante a cultura de “diminuição da palavra” dominante: indigno-me quando percebo que as pessoas não estão disponíveis para ler emails com mais de duas (pequenas) frases, ouvir podcasts ou ver vídeos com mais de dois minutos, escutarem as outras mais de quinze segundos… E resisto: insisto em escrever emails cuidados e, por vezes, longos; rejeito apresentações e comunicações simplistas para questões que são complexas; gosto de ouvir programas de rádio com conteúdo; adiro o menos possível a formas de comunicação simplistas e despersonalizantes; perco (ou ganho) tempo a escrever para o Ponto SJ; e, acima de tudo, tento não me deixar cair na tentação de fazer aquilo que me indigna (mas, aqui e ali, também o vou fazendo).
Também para mim, “a diminuição da palavra é a nossa diminuição”. Também para mim, a palavra não é apenas mais uma coisa; não é um acessório descartável. Também para mim, a palavra está no âmago daquilo que somos e fazemos, enquanto pessoa e enquanto sociedade. Também para mim, a ideia duma cultura dominante de “diminuição da palavra” é angustiante e prenunciadora de maiores injustiças, piores conflitos e de uma crescente falta de liberdade e predisposição para a manipulação. Ainda para mais porque esta cultura se baseia, por um lado, numa falácia com ar de lógica economicista (“não há tempo, não há dinheiro, não há atenção”) e, por outro, numa certa forma de determinismo/ditadura do novo e do imediato, olhando-se apenas para o presente e desvalorizando-se o passado (e, neste caso, o diferente), de tal forma que quase se consegue invisibilizá-lo e torná-lo inacessível. Felizmente, ainda estamos no “quase”.
Mas, fico a pensar: não poderá ser um dos aspetos fundamentais da educação o dar a oportunidade de (re)conhecer formas outras de comunicação e abrir horizontes e possibilidades?
Curiosamente, com a minha filha de onze anos passou-se algo que contradiz esta visão determinista (e ditatorial). Porque eu fazia questão de ouvir o programa e íamos juntos no carro, ela também tinha de o ouvir, coisa que no início muito a contrariava porque era menos tempo que estávamos num outro qualquer programa da manhã a ouvir uma qualquer (muito) repetida música do momento. “Outra vez essa seca”, “Que chatice”, “Não acredito, pai!”, era o que ia ouvindo no início. Com o passar do tempo, as resistências (ousaria chamar-lhes preconceitos) foram caindo e ela começou a escutar. E a escuta foi-a interpelando, de tal forma que num dado dia, no final da crónica, ela começou a fazer perguntas, curiosa, interessada. Desde aí, sempre que ouvíamos a crónica do dia, regra geral, fazia-se silêncio e escutava-se. No dia em que ouvi a última crónica ela não estava – já a tinha deixado na escola. Quando ao fim da tarde lhe disse que tinham acabado com O Fio da Meada, respondeu: “A sério? Não acredito. Gostava mesmo desse programa”.
Isto leva-me à questão da educação e às narrativas que cada vez mais vou ouvindo sobre como não vale sequer a pena falar-se de textos muito compridos (quanto mais de livros), nem de ideias complexas ou formas de comunicar mais demoradas. Porque é assim… porque “não há tempo, não há dinheiro, não há atenção”.
Mas, fico a pensar: não poderá ser um dos aspetos fundamentais da educação o dar a oportunidade de (re)conhecer formas outras de comunicação e abrir horizontes e possibilidades? Se não o fizermos, não estaremos a contribuir para que as crianças e os jovens fiquem reféns destas “novas formas de comunicação”, fechados no preconceito e sem possibilidade de experimentarem essas outras formas para depois, então sim, poderem ir optando por aquilo que mais os motivar e interessar? E se com alguns jovens (ou com muitos) acontecer aquilo que sucedeu com a minha filha, ao ir ouvindo as crónicas de O Fio da Meada, e descobrirem que, afinal, esta coisa de escutar, de ler, de pensar de forma estruturada e dedicando-lhe um tempo maior que aquele que é a norma, é uma coisa que lhes interessa e de que até gostam?
Não nego que é uma tarefa pedagógica exigente, mas enquanto educadores e educadoras, faz-me confusão que fiquemos nós mesmos reféns deste preconceito cómodo e facilitista. De facto, teria sido mais fácil ceder à minha filha e, em vez de insistir em tentar ouvir as crónicas de O Fio da Meada, mudar a estação de rádio para satisfazer o seu apetite do momento, convencendo-me (e enganando-me) a mim próprio de que os jovens de agora são assim e pronto, não vale a pena insistir, eu é que sou antiquado. Mas teria sido uma pena e uma perda… para ela e para mim.
Em sinal contrário ao encerramento de O Fio da Meada, não posso deixar de saudar o segundo aniversário do Ponto SJ e o sinal de resistência e contra-corrente que este projeto dá ao tornar visível a palavra de muitas e muitos, diferentes e iguais, para muitas e muitos, também diferentes e iguais. Tomando a liberdade de me inspirar na última frase da crónica de Alexandra Lucas Coelho (que foi também a última frase de O Fio da Meada), ouso terminar este texto escrevendo:
Obrigado a quem está aí, a quem lê. Enquanto houver alguém aí, alguém que leia, alguém que ouça, faz sentido continuar.
Foto de destaque: Pixbay
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.