Há uma forma de pensar e de viver o cristianismo na qual o “sol” das verdades eternas brilha com uma tal força que toda e qualquer “sombra”, seja dúvida ou perplexidade, simplesmente se esfuma. Tudo é radioso, claro, banhado numa luz sem matizes nem contrastes. Não há nada que não tenha pronta resposta, não há nenhum vazio que não receba imediatamente cúmulo.
Esta militância da certeza e do pleno infetou também a maneira de ler as Escrituras. Sob um clarão triunfalista, a História Sagrada torna-se uma espécie de epopeia, comandada por um Deus-herói que tudo pode, tudo resolve, tudo esclarece. Nesta versão da História, os fracassos são apenas contratempos e, no final, o manto da vitória tudo cobre, tudo limpa, tudo justifica.
Dei por mim a pensar assim ao escutar a homília num dos Domingos de Páscoa. O evangelho da missa era a famosa passagem da aparição aos discípulos de Emaús (Lucas 24:13-35), quando Jesus se faz ao caminho com aqueles dois homens, escuta a sua história e as suas frustrações e, depois de partilhar com eles o pão, desaparece diante dos seus olhos. Uma leitura simplista do texto corre o risco de só reconhecer o movimento da desilusão para a consolação, da ausência para a presença, deixando-se deslumbrar por um Ressuscitado cujas aparições parecem desatar todos os nós, dissipar todos os medos. Mas, a história dos discípulos de Emaús relata também uma experiência de perda, de “desaparecimento”. No final, como no final do Novo Testamento, os discípulos de Jesus estão entre eles, certo!, com a convicção que Jesus não os abandona, mas também com a experiência que a presença física deu lugar a uma outra forma de presença, mais subtil, sob palavras e gestos repetidos sobre pão e vinho; uma presença ferida de ausência.
A fração do pão é simultaneamente graça e súplica, consolação e desejo de uma plenitude, de uma presença, que é aqui tão só, e asceticamente, revelada.
Encontrei uma belíssima ilustração desta experiência de traços delicados num conto do escritor norte-americano Raymond Carver, intitulado A small, good thing. Uma jovem mãe desloca-se a uma padaria para encomendar o bolo de aniversário do seu filho único. Feita a encomenda, preparada a festa, o filho é vítima de um acidente de viação na manhã mesmo do seu aniversário e acaba por morrer dias depois. Aos pais, numa dor inconsolável, chegam as chamadas noturnas do padeiro que se queixa do facto de ninguém ter vindo reclamar o bolo. Enfurecidos pela situação e cegos pelo sofrimento, mãe e pai decidem deslocar-se até à padaria a meio da noite para recriminar este monstro sem sentimentos. Na padaria, no entanto, os três personagens, os pais feridos pela perda e o padeiro ferido pela experiência do fracasso, acabam por encontrar a graça difícil de aceitar as ausências e as sombras nessa “coisa simples, boa” que é saborear pão quente, acabado de fazer.
O desfecho “eucarístico” deste conto, escrito por um autor que não o fez com o intuito de ilustrar as verdades da fé, coloca-nos diante das nossas próprias experiências de perda com um olhar mais humano, menos triunfalista, sem nos deixar cair no desespero. Os apóstolos reunidos depois da Páscoa, animados pela certeza de que o Senhor está vivo, fazem também a experiência de estar agora sem o Jesus da presença constante, do calor dos gestos e das palavras. A fração do pão é simultaneamente graça e súplica, consolação e desejo de uma plenitude, de uma presença, que é aqui tão só, e asceticamente, revelada.
No limite, diante das nossas perdas, de pessoas queridas e de nós mesmos, diante dos nossos fracassos e frustrações, pecados e ausências, a fé não nos quer oferecer, antes de mais, respostas ou soluções. O Ressuscitado deixou-nos, como àqueles pais no conto de Carver, um “viático”, isto é, um alimento para o caminho (“via”), um pão que é preciso aprender a mastigar, aceitando que as lágrimas se misturem com os grânulos da promessa divina.
Nota: o conto A small, good thing faz parte da coletânea de contos intitulada Cathedral. A obra foi publicada em português (Catedral), pela Quetzal Editores.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.