Propaganda descarada e açúcares escondidos

O que suscita surpresa é a incapacidade que neste momento o nosso país parece ter para usar a imagem e a palavra para a construção comum da consciência pública. E é pena.

Não é sobre a relevância política da obra recente de Alexandro Farto aka Vhils, ou de vários dos seus associados, que gostava de falar neste texto – embora esse seja um tema que daria pano para mangas. Mas gostava de começar com esta nota: está ainda aberta ao público, em Lisboa, uma pequena exposição chamada “Propaganda” com material da coleção pessoal de Vhils. Uma pequena exposição, composta por vinte e três cartazes, que retrata o que foram os anos de ouro da propaganda cubana e vietnamita, com a sua estética vibrante e com a sua inequívoca dedicação às causas da libertação.

A maioria dos cartazes cubanos tem que ver com a luta travada durante os anos 60 e 70 pela OSPAAAL, incluindo cartazes famosos de apoio a Nelson Mandela ou a Patrice Lumumba; e vários dos cartazes vietnamitas são tentativas de promover ou a independência do país, ou a consciência da importância da educação entre o povo. São cartazes fortes, com uma mensagem clara, onde a ligação entre imagem e texto espelha “uma enorme capacidade de sintetizar ideias complexas em imagens impactantes e imediatamente acessíveis”.

O que mais impressiona nesta pequena exposição é a capacidade para dizer o que tem que ser dito. O povo cubano e o povo vietnamita, através da imagem e da palavra, descobriram maneiras de se motivar como nações para uma série de combates travados por todos. Independentemente do mérito ou do demérito destes regimes, independentemente do mérito ou do demérito dos seus governantes, independentemente do mérito ou do demérito que o juízo da história continuará a fazer destas duas nações, é impressionante a forma como a sua propaganda funcionou para unir um país em torno de grandes ideais. A pobreza é má, o domínio por poderes estrangeiros é mau, o analfabetismo é mau. Não me interessa aqui falar sobre a coerência destes projectos, que com frequência condenavam a censura vinda do exterior para depois imporem sobre os seus próprios povos uma censura com a força do ferro. O que interessa, uma vez mais, é só ver como a imagem e a palavra serviram para unir estas nações em torno dos grandes ideais que a definiam. A imagem, a palavra, os ideais. Unidos de forma explícita.

Tenho andado a pensar nesta exposição desde que soube que o Ministério da Saúde teve que alterar a campanha que lançou para alertar para os perigos do “Açúcar Escondido”. Confesso que não liguei muito quando vi as notícias do lançamento da campanha. Honestamente, é um assunto que me interessa pouco e que me parece até algo abusivo: moldar esta campanha sob a égide da “responsabilidade social” é quase desrespeitoso para com os muitos assuntos sociais cuja urgência o Governo tem ignorado. Sem pensar muito, qualquer um de nós seria capaz de pensar em meia dúzia de assuntos cuja prevenção parece ser mais importante do que esta luta de procurar reduzir o açúcar consumido pela população em geral. Em todo o caso, entendo o propósito: a prevenção é importante para a saúde, é importante para o SNS, é importante para o futuro. Não morro de amores pela campanha, mas entendo-a. É legítima. É válida. Não passa por isso a ser urgente. Mas tem o seu valor e o seu lugar.

A necessidade de alterar a campanha é o que de facto me parece relevante em toda esta história. Por razões exploradas neste artigo (é curioso que os outros jornais e televisões não tenham dado atenção ao tema), o spot televisivo teve que ser alterado. Parece que havia uma caixa de cereais, uma garrafa de ketchup e uma lata de sumo que se assemelhavam demasiado às produzidas por três marcas que têm produtos no nosso mercado – e anúncios nas televisões de canal aberto, por coincidência. E parece que as marcas, de várias formas e a entidades diferentes, manifestaram o seu desagrado para com a campanha levando à alteração do spot publicitário de forma a eliminar a possível fonte de identificação dos produtos falsos usados no anúncio com as marcas verdadeiras com presença no mercado. Isto é: a campanha, que servia para alertar para os perigos do açúcar escondido, acabou a ter que ser alterada porque os produtos dados como exemplos se assemelham demasiado a produtos reais.

Como disse, eu não sou especialmente adepto desta campanha. Mas parece-me perfeitamente absurdo que um anúncio destes tenha que ser corrigido. Seria o mesmo que ter que corrigir as fotografias que aparecem nos maços de cigarros porque uma determinada marca considera que o cigarro na mão da grávida doente se assemelha demasiado a um dos seus cigarros. Ora, se a carapuça serve (…). Aquilo que as marcas não podem dizer é que “sim, eu reconheço que o açúcar escondido faz mal – mas ao mesmo tempo, não estou disposto a que digam que o meu produto que tem açúcar escondido faz mal apesar de eu saber que ele faz mal; portanto, o que eu vou mudar não é a composição do meu produto, mas é o anúncio da televisão que alerta para o facto que eu reconheço que é mau”. Há aqui uma hipocrisia lamentável. Porque das duas uma: ou as marcas mostram que o açúcar escondido não é um problema e, como tal, que a campanha do Ministério da Saúde é infundada; ou, se não contrariam a tese do Ministério da Saúde e de facto os seus produtos são também visados pela campanha, aquilo que não podem fazer é dizer que “a campanha é válida, desde que não exponha a minha careca”.

Independentemente da pertinência discutível da campanha do Ministério da Saúde, o que suscita surpresa é a incapacidade que neste momento o nosso país parece ter para usar a imagem e a palavra para a construção comum da consciência pública. A campanha de prevenção para os açúcares escondidos e a necessidade de a alterar por causa de interesses dúbios é só um exemplo desta incapacidade. E é pena. É pena que em Cuba e no Vietname se tenha usado a propaganda política para unir a nação nas lutas hercúleas que se travavam – mas que nós, em Portugal, não sejamos capazes, atualmente, de construir um modelo de “propaganda benigna”, partilhada, reconhecida por todos como necessária e urgente. É pena que não sejamos capazes de construir uma propaganda benigna que alerte para os perigos do abandono do mundo rural, ou uma propaganda benigna que alerte para os perigos da violência suburbana, ou uma propaganda benigna que alerte para os perigos associados à forma como se fala de futebol nas nossas televisões. Claro: se não somos capazes de nos unir numa campanha contra os açúcares escondidos por causa do desenho de uma caixa de cereais, de uma garrafa de ketchup, ou de uma lata de sumo, como é que vamos ser capazes de nos unir para temas como estes que referi e que exigiriam muito mais músculo, muito mais diálogo, muito mais confronto?

 

 

 

P.S. é curioso que não tenha havido da parte de nenhuma igreja cristã o pedido de alteração do spot, dadas as semelhanças que o spot tem com a Última Ceia. É caso para dizer: motivações diferentes, reações diferentes…

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.