Problemas nas autocracias

A ideia de que as democracias liberais são regimes políticos fracos e que as autocracias se mostram mais eficazes não corresponde ao que assistimos no mundo no último ano.

Depois de um período de alguns anos durante o qual a democracia se implantou em vários países do mundo, nos tempos recentes as autocracias multiplicaram-se, dando a ideia de um recuo da democracia liberal. Mas agora há indícios de que algumas autocracias e alguns movimentos de opinião que favorecem regimes considerados fortes (autocráticos…) sofrem de problemas. Assim se desmente a ideia de que a autocracia convence as pessoas de que é preferível à democracia.

É certo que as democracias liberais existentes no mundo não são o paraíso e que há muito a corrigir nesses regimes. Mas, pelo menos, em democracia podemos criticar os seus defeitos e lutar para que sejam ultrapassados, o que manifestamente não acontece com os problemas das autocracias.

Vejamos alguns casos.

O caso americano

Os Estados Unidos são uma democracia. Mas desde 2020 que nela se vive uma estranha situação, que nada tem de democrática. Joe Biden foi eleito naquele ano, mas Donald Trump não apenas não reconheceu a sua derrota como levou um grande número de políticos do partido republicano a manterem até hoje a mentira de que ele, e não J. Biden, tinha ganho nas urnas.

Trata-se de facto de uma mentira, pois inúmeras entidades independentes, como tribunais, certificaram não terem existido irregularidades nas eleições presidenciais de 2020. Claro que Trump mantem essa ficção, na esperança de vencer em 2024. Mas que dizer de uma democracia onde quem perde eleições logo as declara fraudulentas?

É óbvio que algo se encontra profundamente errado num tal regime. E não se trata apenas de Trump, mas das dezenas de políticos republicanos que proclamam essa ficção como sendo verdadeira. Além dos seguidores norte-americanos de Trump, no Brasil nomeadamente.

Trump tentou mesmo um golpe de Estado, de modo a impedir Joe Biden de tomar posse. Foi a tristemente célebre invasão do Capitólio em 6 de Janeiro de 2021. Os invasores tentaram impedir o vice-presidente de Trump e presidente do Senado, Mike Pence, de certificar a eleição de J. Biden. Naquele dia, apoiantes de Trump, alguns deles armados, invadiram o edifício onde se situam o Senado e a Câmara dos Representantes, duas assembleias legislativas federais, numa tentativa de impedir o processo de certificação de uma “eleição roubada”.

O que me pareceu mais preocupante, porventura ainda mais grave do que a invasão do Capitólio, foi a vida política do partido republicano ter avançado durante longos meses sem uma censura clara à mentira alimentada por Trump e à sua tentativa de golpe de Estado.

O que me pareceu mais preocupante, porventura ainda mais grave do que a invasão do Capitólio, foi a vida política do partido republicano ter avançado durante longos meses sem uma censura clara à mentira alimentada por Trump e à sua tentativa de golpe de Estado. Certamente que muitos dirigentes republicanos são democratas, mas falharam por omissão. Muitos outros, convencidos de que o apoio de Trump era a chave para o seu êxito eleitoral, alinharam publicamente na mentira, embora seja pouco credível que eles próprios tivessem acreditado nela.

Até que nas eleições intercalares de novembro de 2022 aconteceu que muitos dos candidatos apoiados por Trump foram derrotados. Analistas detetaram um certo cansaço nos votantes com as fantasias de Trump. E surgiu um possível candidato republicano à eleições presidenciais de 2024: Ron DeSantis, que venceu folgadamente a reeleição para governador da Flórida.

Sondagens entretanto realizadas no EUA colocam Ron DeSantis francamente à frente de Trump para ser o candidato oficial do partido republicano. Claro que DeSantis é profundamente conservador; mas não é Trump, nem recorre às falsidades do ex-presidente.

Por outro lado, acumulam-se os processos judiciais contra Trump e as suas empresas, algumas das quais já foram condenadas. Trump anunciou ir candidatar-se em 2024, provavelmente para adiar processos incómodos.

Certamente que Trump não está ainda derrotado. Mas a sua influência no partido republicano sofreu um forte abalo. A democracia americana só terá a ganhar com o afastamento de Trump da cena política.

Se a democracia dos EUA se degradasse provocaria um problema sério nas democracias liberais em toda parte. Por isso a esperança de que o “episódio Trump” seja ultrapassado envolve todo o mundo democrático.

Se a democracia dos EUA se degradasse provocaria um problema sério nas democracias liberais em toda parte. Por isso a esperança de que o “episódio Trump” seja ultrapassado envolve todo o mundo democrático.

A China de Xi Jinping

Em meados de Outubro passado realizou-se o XX Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC). O líder Xi Jinping foi consagrado como chefe do partido sem limite de tempo. Pela primeira vez desde Deng Xiaoping o Presidente chinês é simultaneamente Secretário-geral do partido e tutela todos os órgãos de poder ao nível político e das Forças Armadas.

Trata-se, de facto, de uma enorme concentração de poder em Xi Jinping. Não foi designada para cargo relevante qualquer pessoa que pudesse vir a fazer críticas a Xi Xinping. Foram escolhidos os apoiantes e os fiéis do líder.

O programa político de Xi pretende mostrar ao mundo que o regime chinês é superior ao das democracias liberais e concretamente ao regime norte-americano. Ao mesmo tempo, o líder chinês vive preocupado em não repetir o que considera ter sido o desastre soviético – um partido tão forte como o que comandou a União Soviética deixou cair o poder…

O programa político de Xi pretende mostrar ao mundo que o regime chinês é superior ao das democracias liberais e concretamente ao regime norte-americano.

Menos de um mês depois do Congresso do PCC, aconteceram na China algumas evoluções inesperadas. O PCC tinha apostado num combate eficaz contra a pandemia de covid-19. E durante algum tempo as coisas pareciam correr de feição. Mas nos últimos dois meses de 2022 a pandemia revelou-se mais virulenta do que o esperado, não conseguindo as autoridades contê-la, apesar dos rigorosos confinamentos e outras restrições impostas. Ora estas restrições levaram a numeras manifestações de repúdio um pouco por toda a China, sendo que em algumas o próprio PCC foi verbalmente atacado, algo que nunca antes se havia visto.

Respondendo às manifestações, o poder político chinês mudou radicalmente de estratégia no combate à covid-19, eliminado confinamentos obrigatórios e outras restrições. Ao ponto de vários observadores se interrogarem sobre se esta viragem não irá trazer à China uma pandemia muito mais grave. As autoridades chinesas deixaram de divulgar regularmente o número de mortes resultantes da covid-19. Dir-se-ia que estarão a ocultar os óbitos reais.

Por outro lado, as restrições severas da política de covid zero, enquanto ela durou, refletiram-se em entraves ao crescimento da economia chinesa. Removidas essas restrições, mantém-se no entanto o controle apertado da gestão das empresas pelo PCC. A liberdade de mercado de Deng Xiaoping pertence ao passado. As espetaculares taxas de crescimento do PIB chinês não irão regressar. O governo e o PCC (que se identificam) perdem, assim, uma fonte de legitimidade.

É inegável que o PCC “perdeu a face” e que daqui em diante só o sofisticado e implacável aparelho de repressão chinês manterá o regime no poder.

A Rússia de Putin

Vladimir Putin tornou-se primeiro-ministro da Rússia em 1999. Este antigo agente do KGB, a polícia política da União Soviética, ascendeu depois a Presidente da Rússia.

Nos seus primeiros anos no poder Putin deu aos russos uma certa estabilidade, depois dos tempos agitados que se seguiram à implosão da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Implosão que Putin viria a considerar a grande tragédia geoestratégica do século XX. Mas desde logo se percebeu que Putin não hesitava em utilizar métodos violentos para pacificar regiões “rebeldes”, como a Chechénia.

Embora inesperada, não foi assim surpreendente a invasão da Ucrânia, em 24 de Fevereiro de 2022. Só que esta “operação militar especial”, como foi oficialmente designada, não está a correr bem para Moscovo.

A Rússia é uma potência nuclear e – presumia-se – tem Forças Armadas poderosas. No entanto, após quase um ano de invasão da Ucrânia, a Rússia não conseguiu impor-se militarmente. A reação patriótica dos ucranianos, que lutam bravamente pela sua terra, não tem dado aos invasores russos quaisquer facilidades.

O futuro político de Putin depende de como terminar a guerra com a Ucrânia, que ele contava ganhar em pouco mais de uma semana. Cada vez é mais claro que se tratou de um grave erro, fruto de má informação ou de uma irracional ambição de Putin. Certo é que o poder no Kremlin se encontra agora ameaçado como nunca antes.

Internacionalmente a infausta invasão da Ucrânia isolou mais a Rússia. Decerto que o líder chinês Xi Jinping aprecia tudo o que seja contra os Estados Unidos; mas, sobretudo por causa da posição de Pequim sobre Taiwan, uma invasão e a conquista de território pela via militar são realidades que incomodam o Partido Comunista Chinês. Por isso os dirigentes chineses, não tendo frontalmente condenando a invasão, apelam sobretudo à contenção de Moscovo. Aliás, nas relações Rússia-China predomina claramente o maior poderio chinês; os russos são a parte “júnior”.

Entretanto, internamente o regime de Putin tornou-se cada vez mais autoritário, com traços crescentes de fascismo. Sabe-se como os adversários políticos de Putin, isto é, aqueles que lutam na Rússia por liberdade e democracia, são frequentemente liquidados por atentados e envenenamentos, muitos deles mortais.

O futuro político de Putin depende de como terminar a guerra com a Ucrânia, que ele contava ganhar em pouco mais de uma semana. Cada vez é mais claro que se tratou de um grave erro, fruto de má informação ou de uma irracional ambição de Putin. Certo é que o poder no Kremlin se encontra agora ameaçado como nunca antes.

Viktor Orbán e a democracia iliberal

É conhecida a tendência de os políticos da direita radical se sentirem mais próximos das ditaduras de esquerda do que das democracias liberais. É o caso do regime construído na Hungria por Viktor Orbán.

A Hungria entrou na União Europeia (UE) em 2004, juntamente com outros países do Leste europeu, que tinham sido dominados pela União Soviética. V. Orbán havia-se manifestado contra o domínio soviético, mas não enveredou por edificar uma democracia liberal. Nas suas próprias palavras, criou uma democracia iliberal.

O que significa manter formalmente o regime democrático, com eleições nomeadamente, mas esvaziá-lo na prática. Assim, na Hungria realizam-se eleições, mas não são livres nem justas; por isso o partido de Orbán ganha sucessivas eleições.

Na Hungria o sistema judicial não tem autonomia face ao poder político. No país existe juridicamente liberdade de expressão, mas Orban logrou entregar a maioria dos órgãos de informação a amigos políticos. Assim condiciona a liberdade de informar, sem precisar de recorrer à censura. O mesmo tem feito Orbán na colocação de dirigentes em órgãos formalmente independentes, como o banco central. Em 2020 foi transferido o controle de onze universidades para fundações dirigidas por pessoas da confiança política do primeiro-ministro. etc.

Da UE tem a Hungria recebido muito dinheiro, só que a maioria desses fundos é encaminhada para aliados de V. Orbán. Naturalmente que esta situação se presta à corrupção; a UE tem reagido, ameaçando retirar fundos de Bruxelas à Hungria.

V. Orbán não alinhou nas sanções da UE à Rússia e manteve boas relações com Putin, que lhe fornece gás e petróleo.

A integração europeia não é vista com bons olhos por Orbán, que lhe coloca reservas. Recentemente, incomodado com as críticas que lhe dirigiu o Parlamento Europeu, Orbán defendeu que esta assembleia deveria ser preenchida, não por eleições diretas, como agora acontece, mas por deputados eleitos nos parlamentos nacionais – seria um recuo de décadas.

Por outro lado, o primeiro-ministro húngaro recusa misturar raças (que ele diz ser no sentido cultural e não genético), pois quer no seu país apenas a raça europeia, branca. É um “supremacista branco”, portanto. Também restringiu direitos às minorias LBGT.

Por outro lado, o primeiro-ministro húngaro recusa misturar raças (que ele diz ser no sentido cultural e não genético), pois quer no seu país apenas a raça europeia, branca. É um “supremacista branco”, portanto. Também restringiu direitos às minorias LBGT.

Naturalmente que esta “democracia iliberal”, que não é uma verdadeira democracia, cultiva valores muito diferentes dos valores que aliamos à integração europeia. Daí que a UE esteja a impor condições à Hungria para receber fundos europeus. E V. Orbán lá vai cedendo alguma coisa. Mas não será possível manter esta situação por muito tempo. O populismo nacionalista de V. Orbán é dificilmente compatível com a UE.

A força das democracias liberais

Poderiam apontar-se outros casos de autocracias em dificuldades. O que se passou no Brasil, uma semana depois da posse de Lula como presidente não trouxe uma imagem positiva para os seguidores de Bolsonaro. Nem, de resto, para Trump, que tem incentivado a direita radical no Brasil

Na Argentina o peronismo parece estar em vias de desaparecer, embora já várias vezes tenha renascido das cinzas. E na democrática Austrália o primeiro ministro Scott Morrison, um seguidor de Trump, perdeu as eleições de maio de 2022, sucedendo-lhe o trabalhista Anthony Albanese.

Defensores de regimes autoritários, de esquerda e de direita, costumam classificar as democracias liberais de regimes fracos, sem espinha dorsal. Mas o que se viu depois da invasão russa da Ucrânia não foi isso. Não só a democracia ucraniana, apesar das suas imperfeições, mostrou uma surpreendente capacidade de resistência aos invasores, como os Estados Unidos e a Europa comunitária se empenharam em ajudar a Ucrânia financeira e militarmente.

Esta demonstração de vitalidade não se enquadra na imagem decadente que Putin e outros autocratas procuram traçar das democracias liberais. É também altura de rever a imagem de eficácia que muitos ainda colam às autocracias.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.