Prisões: longe da vista, longe do coração

Sermos instrumento de reinserção social é, ultimamente, um ato de cidadania, porque uma sociedade que não é capaz de dar segundas oportunidades promove a reincidência criminal.

Comecei um novo caminho no início deste ano que hoje partilho convosco, na esperança de que me queiram acompanhar no mesmo: rever o olhar sobre as pessoas que se encontram nas prisões, substituindo as certezas por incertezas.

A realidade nas prisões, felizmente, não me é familiar. Venho falar-vos do muito pouco que vi pela televisão, li no computador, falei com pessoas do meio e daquilo que senti face a essas novas informações. Um caminho que tenho feito confortavelmente em minha casa, sendo que, no entanto, cresce em mim a vontade de sair do sofá.

Começo por vos sugerir algumas séries e filmes, nomeadamente “Aos olhos da justiça”, “Just mercy”, “O milagre na cela 7” e o documentário “Injustice”, que, de formas muito diferentes tocam em elementos comuns e relevantes neste meu percurso. O primeiro elemento é a revelação de uma sociedade que rapidamente (e muitas vezes cegamente) aponta o dedo. O segundo elemento é a relação humana que possibilita o processo de identificação com os reclusos, evidenciando pessoas que, como todos nós, cometeram erros. E, por fim, a presença de misericórdia em algum gesto, palavras ou personagem que nos conforta pela verdadeira justiça que restabelece.

Através dos testemunhos compreendemos que inúmeras pessoas que se encontram em prisões sentem que nasceram condenadas, perante uma sociedade que sempre os marginalizou pela pobreza ou por outro fator sobre o qual sentem que detêm pouco controlo.

Este ano, a Páscoa foi para mim muito marcada pela imagem dos Homens sedentos para crucificarem Jesus. A Via Sacra presidida pelo Papa Francisco no Vaticano na Sexta-feira Santa, com as meditações realizadas por pessoas relacionadas com o estabelecimento prisional de Pádua, foi particularmente relevante.

Através dos testemunhos compreendemos que inúmeras pessoas que se encontram em prisões sentem que nasceram condenadas, perante uma sociedade que sempre os marginalizou pela pobreza ou por outro fator sobre o qual sentem que detêm pouco controlo. “Não pensar que existia no mundo a bondade foi a minha primeira queda” (meditação por um homem condenado por homicídio). Para quem não teve a oportunidade de ver a cerimónia. aconselho a leitura destes textos no website do Vaticano.

Com a pandemia a evidenciar as vulnerabilidades das cadeias e a falta de apoio que esta parte integrante da sociedade recebe, torna-se urgente o caminho a fazer do lado de fora das grades, para quebrarmos com a indiferença e o abandono perante estas pessoas. Um frade voluntário na prisão de Pádua, na sua meditação para a Via Sacra que acima mencionei, afirma: “Passando duma cela a outra, vejo a morte que vive lá dentro. A prisão continua a sepultar homens vivos: são histórias que ninguém mais quer saber.”

O primeiro exercício neste caminho de mudança de mentalidade é o de ganhar verdadeiramente, e de uma vez por todas, a consciência de que não sou melhor ou superior a ninguém. Quando o dizemos parece-nos tão óbvio, mas não o conseguimos viver, caso contrário não seríamos tão rápidos a julgar (que é coisa que tendemos a fazer diariamente!). A verdade é que poderíamos ser nós, um familiar nosso ou amigo no lugar destas pessoas… Todos nós cometemos erros.

Se, tendo tudo o que preciso, escolho o mal constantemente (preguiça, impaciência, maledicência, …), que escolhas faria se me faltasse comida ou se me sentisse marginalizada sistematicamente? Ou se não tivesse tido uma educação e formação que me ajudassem nas tomadas de decisões? Ou se, mesmo tendo tudo o que precisasse, estivesse rodeada de más companhias que me incentivassem e pressionassem a tomar decisões erradas? A linha é ténue para todos quando somos um produto de muitos fatores e contextos.

Depois de mais pesquisa e compreensão (porque não se pode mudar algo que não se conhece), desafio-vos a levantarem o tema com a vossa família e amigos. É um tema que desconcerta as pessoas e raros foram aqueles com quem conversei que não ficaram desconfortáveis por se aperceberem do pouco que sabem sobre o assunto, inclusive sobre a própria opinião, que nunca foi verdadeiramente formulada. Perguntem pela opinião sobre segundas oportunidades a ex-reclusos. Questionem se empregariam uma destas pessoas. Instiguem o conhecimento sobre o sistema prisional e perguntem-lhes se exigem resultados destas instituições que fazem parte do sistema nacional. E nestas conversas, puxem pelos porquês e percorram a discussão até ao reconhecimento de que as pessoas que se encontram nas cadeias são seres humanos que, como todos nós, tomaram más decisões. Parece-me errado fazermos juízos de valor sobre a pessoa ou considerarmos que um erro priva alguém de segundas oportunidades.

Parece-me errado fazermos juízos de valor sobre a pessoa ou considerarmos que um erro priva alguém de segundas oportunidades.

Existem, felizmente, várias pessoas e iniciativas que se debruçam sobre esta temática e trabalham por um mundo de segundas oportunidades e de total inclusão, como a APAC- Portugal pelo trabalho de desenvolvimento pessoal nas cadeias e de reinserção social, como a Foste Visitar-me pela entrega no voluntariado prisional, e como a Confiar pela sua atividade de suporte aos reclusos e suas famílias e de justiça restaurativa. E tantas outras iniciativas (APAR, Companheiro, Associação Rugby Com Partilha, Solo Ceramic, grupos de voluntários ligados às capelanias dos estabelecimentos prisionais, …) que vale a pena pesquisar e potencialmente fazer parte de forma comprometida e generosa.

Fazermos caminho para nos tornarmos instrumentos de reinserção social (nem que seja pela simples transformação do nosso olhar perante estas pessoas) é, ultimamente, um ato de cidadania. Uma sociedade que não é capaz de trocar as certezas pelas incertezas e dar uma segunda oportunidade é uma sociedade que potencia a reincidência criminal e que, consequentemente, não protege as vítimas.

Nas palavras de um juiz, na sua meditação para a referida Via Sacra, “só é possível uma verdadeira justiça através da misericórdia, que não prega o homem na cruz para sempre: oferece-se como guia para o ajudar a levantar-se, ensinando-lhe a agarrar o bem que, não obstante o mal feito, nunca se apaga completamente no seu coração”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.