Ainda não me habituei à palavra ‘pandemia’. Continua tão surreal como era em março do ano passado. Tenho dificuldade em usá-la a sério. E confesso que continuo sem conseguir dizer ‘a situação que atravessamos’ sem uma certa ironia. Uma última defesa, talvez, que me mantém a uma certa distância crítica. Esta língua que entrou de rompante no nosso dia a dia ainda me soa a estrangeiro: caso confirmado, contacto de alto risco, testou positivo, está em isolamento, desconfinar – e não consigo usá-la naturalmente, tenho sempre um bocado de vergonha, como se talvez não estivesse a falar com a pronúncia certa, ou como se me escapasse a verdadeira referência destas palavras.
Não ajuda que não se converse verdadeiramente sobre isto. Fala-se muito, mas não se conversa. Dizem-se números, sobretudo. Grita-se. Opina-se mais do que o que se devia. Chora-se, talvez. Mas conversar, muito pouco. Não há tempo. Não há espaço. Tudo se passa ou em casa, no meio de tudo o resto, ou em ecrãs. Mas conversar não é só mais do que isso, é diferente. Implica uma disponibilidade que requer presença e atenção impossíveis de replicar no universo digital. Numa conversa verdadeira, não surge uma notificação a meio. Não há a possibilidade de falar para o lado com a segurança e a lata de quem está em mute.
Mas conversar não é só mais do que isso, é diferente. Implica uma disponibilidade que requer presença e atenção impossíveis de replicar no universo digital.
Outra palavra que se tornou, para mim, difícil de pronunciar, é a palavra felicidade. Também sobre isso não é possível conversar hoje, mas as razões são diferentes. Há, parece-me, um equívoco hoje, um paradoxo gritante, em torno desta palavra. Por um lado, a felicidade está na moda. Há relatórios de felicidade, indicadores de felicidade, estudos sobre a felicidade, inúmeras publicações, toda uma ciência do bem-estar, técnicas milenares adaptadas e aplicadas aos dias de hoje, integradas em apps ou divulgadas em livros, tudo ao dispor de todos, para promover uma vida feliz, mesmo quando as circunstâncias apertam – como será o caso de forma generalizada pelo mundo. Além disso, em termos de conforto, acesso a cuidados de saúde e de prosperidade económica, podemos dizer que as condições do mundo de hoje são, estatisticamente, bastante melhores do que há uma, duas ou três gerações.
Por outro lado, os números de depressões e suicídios apontam na direção oposta, para já não falar noutros indicadores que poderíamos relacionar com ausência de felicidade, como a taxa de divórcios. Mesmo a retórica política e o ativismo parecem estar sob a égide negra da infelicidade, da raiva, da zanga. Nas redes sociais e nos média espalhou-se uma onda de indignação contra o ano de 2020, como se um ano pudesse ser culpado de alguma coisa (e claro que 2021 não parece ter começado de forma muito diferente.) Alguma confusão tem de haver.
O problema começa, talvez, na forma como se define ‘felicidade’. Felicidade talvez não queria dizer nada de especial, hoje. Ou talvez haja em circulação tantas ideias contraditórias sobre o que possa ser uma vida feliz, que são substituídas umas pelas outras sem consciência, que a conversa verdadeira sobre isso seja impossível. E, portanto, o conceito torna-se irrelevante, bom para capas de livros duvidosos, mas ineficaz quando se trata de satisfazer de forma profunda, permanente e total os nossos desejos de bem, de verdade e de beleza. Seria preciso, porventura, um pouco mais de sobriedade e coragem neste assunto. Não se contentar com nada que não seja aquilo que verdadeiramente interessa é, antes de mais, contentar-se com poucas coisas… o que requer uma certa pobreza de si para a qual talvez não estejamos naturalmente predispostos, sobretudo ‘na situação que atravessamos’.
Mas a possibilidade de ver satisfeito o nosso desejo aparentemente sem fundo merece, pelo menos, que se arrisque a tentativa. Por isso parece-me especialmente importante o convite que o Papa nos faz de confiar este ano a S. José, o santo das poucas palavras. Que no seu silêncio contemplemos a santidade a que somos chamados. Que vejamos nele como a promessa de vida em abundância nunca poupou ninguém a ficar sem guarida, a ter de fugir de assassinos, a assustar-se com filhos perdidos, a trabalhar para sustentar a família.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.