Porque cuidar das pessoas é cuidar do Ambiente

Ir às periferias existenciais é uma das missões mais pertinentes, complexas e necessárias para enfrentar a crise ecológica.

“Constituir um lugar de encontro, catalisador da conversão ecológica”, é esta a visão assumida pela Associação Casa Velha – Ecologia e Espiritualidade para os próximoscinco anos, no âmbito do seu novo plano estratégico. Este lugar de encontro, “consigo, com os outros, com a natureza”, foi recentemente reconhecido pelo Vaticano enquanto boa prática a replicar, no âmbito do manual “A caminho para o cuidado da casa comum – Cinco anos depois da Laudato Si’”, a par de outra iniciativa, a Rede Cuidar da Casa Comum.

Cheguei à Casa Velha em 2012, entusiasmada e com vontade de explorar a ligação entre o Encontro, vivido nos “Atravessados” (grupo de voluntários da Casa Velha), através da oração e comunidade, e a Ecologia. Afinal, como estas duas palavras se interligavam na prática não me era claro.

Para alguém que estudou ecologia, era realmente difícil compreender como é que um conceito nascido no seio da ciência (sobretudo com Humboldt, no século XIX) podia, de repente, ser aplicado a tantas outras coisas e, até, às relações humanas. Foi preciso uma viagem, literalmente, para encontrar um princípio de resposta.

Afinal, porque é que ainda me custa sacrificar o meu bem-estar em gestos concretos de cuidado pelo ambiente, uma causa com a qual me identifico?

Em 2017, numa ida à comunidade de Madrid das Escravas do Sagrado Coração de Jesus para falar da Encíclica Laudato Si’, esta pergunta não me largava: porque é que cuidar das pessoas é cuidar do ambiente? Durante um exercício que propusemos, no qual analisávamos a conversão ecológica – a nível global, comunitário, individual – com inúmeros exemplos do dia-a-dia, fui-me apercebendo da existência de resistências interiores à conversão ecológica.

Porque é que tomar um banho mais curto e preferir uma viagem de 45 minutos de autocarro a uma de 15 de carro, me pode custar tanto? Estes foram os exemplos que me ocorreram, mas muitos outros podiam ser dados. Afinal, porque é que ainda me custa sacrificar o meu bem-estar em gestos concretos de cuidado pelo ambiente, uma causa com a qual me identifico?

Poderemos concluir, como Christiana Figueres, a “arquiteta” do Acordo de Paris, que afinal “não se trata de nos sujeitarmos a enormes sacrifícios que nos levam a sentir que estamos a ter uma vida pior, na verdade é exatamente o contrário, (…) trata-se de avançar em direção a uma vida muito melhor”, uma vida com melhores condições de saúde, urbanas, de transporte e de investimento.

No entanto, muitos de nós ainda sentimos algumas destas escolhas como sacrifício, acompanhado de um arrepio de culpa, por sabermos que, no fundo, não as queremos fazer. Movidos por um peso na consciência podemos alterar pontualmente algumas escolhas, mas não maturamos hábitos a longo prazo. Segundo a psicóloga Susan Clayton, a culpa pode ser um eficaz trigger de alteração de comportamentos, mas esta dependerá, em muito, do tipo de personalidade de cada pessoa. A culpa não é, por isso, a única via, nem a mais eficaz.

O discurso moralista e negativo que constantemente ouvimos não ajuda, é sabido, mas então o que nos falta? Mais números que nos convençam? Ainda que necessários e impactantes, estes dados não chegam. Não ficamos convencidos (apenas) por informação estatística, mas sim por histórias, por caras, diz-nos Sofia Guedes Vaz. Não nos relacionamos com o “Ambiente”, essa entidade estranha e abstrata, mas rapidamente sentimos empatia por alguém que tenha perdido a sua casa durante um incêndio.

A forma como compreendemos e interiorizamos as razões para cuidar do ambiente é um aspeto importante da conversão ecológica, mas não é o único. Não menos importante é a questão da espiritualidade e, em particular, da paz interior, referida pelo Papa Francisco na Laudato Si’: “ninguém pode amadurecer numa sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. (…) A paz interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, reflete-se num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida”.

Como resultado do exercício realizado em Madrid, apercebi-me de que a resistência a gestos de despojamento em favor do “ambiente” pode ter origem no sentimento de falta, de insatisfação, na sede interior que cada um traz consigo, para usar a expressão do cardeal Tolentino Mendonça, no seu livro “O Elogio da Sede”.

Importa ainda compreender que esta sede é insaciável, “porque aspira àquilo que não se pode possuir: o sentido”, mais uma vez citando a obra referida. Assim, a sede é algo que deve ser aprofundado e não resolvido. Quando não integrada, emocional e espiritualmente, esta sede traduz-se numa falta de paz, que se torna geradora de um estilo de vida acelerado e consumista.

No entanto, aprender a conviver com a nossa sede, a nossa solidão e a nossa procura de Deus, e ajudar outros a conviver com a sua sede, a sua solidão, e a sua relação com Deus, é um caminho necessário, também, à Ecologia, por estranho que pareça.

Podemos argumentar que um estilo de vida acelerado e consumista não é apenas consequência da falta de paz interior. Em boa verdade, o contexto em que vivemos (familiar, de trabalho, ou económico) condiciona as opções relacionadas com a gestão do tempo e o consumo. Neste aspeto, a opção por um estilo de vida sustentável não dependerá somente da boa vontade e predisposição interior, mas também do contexto social. De facto, esta reflexão fica incompleta se não integrarmos na equação o papel das políticas públicas, por exemplo, na regulação das condições de trabalho.

No entanto, aprender a conviver com a nossa sede, a nossa solidão e a nossa procura de Deus, e ajudar outros a conviver com a sua sede, a sua solidão, e a sua relação com Deus, é um caminho necessário, também, à Ecologia, por estranho que pareça.

Ao cuidarmos da paz interior, minha e de outro, ao ajudarmo-nos mutuamente a conviver com a nossa sede, isto é, a aprender a gerir a sede sem a necessidade de a preencher constantemente com paliativos, estaremos mais dispostos a abdicar de pequenos confortos, realizados, tantas vezes, à custa do ambiente.

Os laços de família e amizade que nos estruturam contribuem para a nossa paz interior, tão necessária para nos tornar verdadeiros cuidadores. Então, e onde faltam esses laços? Ir às periferias existenciais, enfrentar as “raízes éticas e espirituais da crise ecológica” é, por isso, uma das missões mais pertinentes, complexas e necessárias para enfrentar a crise ecológica.

Por isso, a Casa Velha e outros lugares com a mesma missão são lugares tão necessários e proféticos, enquanto lugares de reparação, onde se experimenta a comunidade e a espiritualidade, e nos fazem desejar ser verdadeiros cuidadores.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.