Por uma luta contra a indiferença

Uma sociedade decente não pode aceitar que há uma equivalência entre os que têm o que comer e onde dormir e os que não têm, deixando que as diferenças de resultados se expliquem todas pelo mérito.

Há poucas coisas mais dolorosas e mortíferas do que a indiferença. Em política, a indiferença tem vários nomes. Umas vezes chama-se abstenção, noutras apatia. Quando se lhe junta o ódio e o ressentimento, temos a receita de que se alimenta o populismo. Sim, a indiferença pode ser uma forma de ódio, quando serve para ignorar aqueles que precisam de ajuda. E a abstenção é, muitas vezes, a expressão do ressentimento de quem não encontra respostas para os seus problemas.

Podemos atacar os que se afastam em vez de ajudar, os que querem separar em vez de unir, os que que ignoram em vez de fazer. Mas talvez seja mais útil tentar entendê-los, antes de os descartamos para o canto para onde atiramos as coisas monstruosas e sem salvação.

Os que se sentem seduzidos pelas propostas de ódio do populismo são muitas vezes aqueles que sentem não estar a beneficiar da democracia, os que se sentem injustiçados por um sistema que falha em dar-lhes o que lhes prometeu em termos materiais e que não lhes reconhece a dignidade moral a que sentem ter direito pelo esforço do seu trabalho.

Os que se sentem seduzidos pelas propostas de ódio do populismo são muitas vezes aqueles que sentem não estar a beneficiar da democracia, os que se sentem injustiçados por um sistema que falha em dar-lhes o que lhes prometeu em termos materiais e que não lhes reconhece a dignidade moral a que sentem ter direito pelo esforço do seu trabalho.

Não é por acaso que muitos dos discursos populistas assentam numa raiva dirigida àqueles a quem chamam “subsídio-dependentes”. Esse é um truque para fazer com que os que trabalham e não ganham o suficiente dirijam o seu ódio para os que menos têm.

O terreno é fértil, se pensarmos nos dados do Barómetro Europeu sobre Pobreza e Precariedade, que revelam que um em cada dois portugueses que trabalham não consegue suportar as suas despesas com o seu salário. A desigualdade é, por isso, uma das fontes de que se alimentam os discursos populistas, que lhe apontam o dedo, mas não oferecem soluções.

Quando falamos em “subsídio-dependentes”, nunca nos lembramos de que entre 2008 e 2020 o Estado injetou 22 mil milhões de euros na banca, mais ou menos o valor da famosa bazuca europeia do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), e que, segundo um parecer do Tribunal de Contas, a expectativa de recuperação deste dinheiro “é de pouco mais de um terço”.

Não é por acaso. A retórica de valorização do trabalho tem perdido fôlego ao ritmo a que caem as remunerações dos trabalhadores e se instala a ideia da meritocracia. Se partirmos do pressuposto de que todos têm as mesmas oportunidades, os que ficam para trás carregarão em si a culpa de terem falhado.

Se partirmos do pressuposto de que todos têm as mesmas oportunidades, os que ficam para trás carregarão em si a culpa de terem falhado.

Olhar nos olhos aqueles que ajudamos a levantar-se

Há uma frase do Papa Francisco, nestas Jornadas Mundiais da Juventude em Lisboa, que me parece fundamental para navegar os tempos políticos que vivemos. “Reparai, quando alguém tem de levantar ou ajudar uma pessoa a levantar-se, que gesto faz? Olha-a de cima para baixo. Trata-se da única ocasião, do único momento, em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo: quando queremos ajudá-la a levantar-se”, disse. Esta frase contém duas ideias essenciais: a da igualdade e a da dignidade.

A igualdade deve começar por ser moral, mas não pode deixar de ser material. Uma sociedade decente não pode aceitar que há uma equivalência entre os que têm o que comer e onde dormir e os que não têm, deixando que as diferenças de resultados se expliquem todas pelo mérito.

Não há igualdade de oportunidades quando se passa frio e fome antes de ir para a escola. Não há igualdade de oportunidades quando uns têm estantes cheias de livros e outros passam o dia em frente a ecrãs porque os pais não têm outra alternativa. Só se combate a desigualdade quando a reconhecemos e entendemos que as suas vítimas não podem ser tratadas como falhados.

Olhar alguém nos olhos é atribuir-lhe dignidade. É reconhecê-lo na sua essência humana. É sentir empatia. Não haverá combate às desigualdades sem reconhecermos o outro como digno de partilhar connosco a riqueza e como parte de uma mesma comunidade.

Sigamos as palavras de Francisco, quando nos ensina a olhar de frente para os outros, mas também a estender a mão para erguer os que caíram.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.