1.
Ainda bem que inventaram o espírito crítico. O facto de nos termos habituado a questionar as coisas, a verificar factos e a pensar pela nossa própria cabeça é uma conquista enorme. Claro que todos sabemos, no entanto, que nem sempre somos tão críticos assim. A mera existência (e frequência) da corrupção, a disseminação rápida e fácil das fake news, ou a persistência dos preconceitos políticos ou religiosos mostram como o espírito crítico nos escapa ainda. Quantas vezes não vemos o que está mesmo à nossa frente por teimosia, por partidarismo ou mesmo por preguiça: cada um que diga de si. Talvez fosse mais modesto – e mais honesto – por isso, dizer que nos esforçamos por pensar criticamente e que por vezes até o conseguimos fazer – para benefício comum.
Várias pessoas, ao longo da história, deram exemplo de espírito crítico. Umas ajudaram-nos a observar o mundo físico; outras, a pensar na vida em sociedade; algumas pessoas conduziram-nos ao divã para nos ajudarem a dar nome aos nossos tabus; houve pensadores que nos convidaram a reler a história de uma forma mais humana e menos epopeica; vários lançaram um alerta a respeito da relação entre religião, política e moral. Portanto, em cada época, e com estilos diferentes, foram aparecendo figuras que pensaram e ajudaram e pensar.
2.
Mas, se o espírito crítico nos ajuda a perder as ilusões (e os fantasmas) que cobrem os nossos discursos sobre a vida e o mundo, também é verdade que, muitas vezes, ele parece ser sinónimo não tanto de lucidez, mas de cinismo. Vejamos um exemplo.
Para muitas pessoas, a (excelente) série Guerra dos Tronos é uma alegoria sobre as sociedades humanas. Nela exploram-se os meandros que unem sexo e poder, (des)lealdade e riqueza, virtude e força. Ali, só aparentemente o mundo é governado pela honra e pelos ideais de nobreza: profundamente, o que move os povos são os interesses de clãs. A honra não garante a ninguém a vida ou o sucesso; e mesmo nos malvados há que reconhecer génio. Alguns leitores (ou espectadores) poderão precipitar-se acusando a narrativa de ser demasiado simplista, onde tudo se resume, no fundo, a três palavras: sexo, dinheiro e poder. Contudo, olhando o enredo com mais detalhe talvez se descubra outros aspectos. A história surpreende-nos pela complexidade das personagens e das situações que atravessam; surpreende-nos também pela forma como interroga as motivações que subjazem tantas das escolhas que fazem, tantas vezes mais complexas (e nobres) do que o que aquelas três palavras poderiam fazer entender.
Porém, desta série, se alguma conclusão podemos tirar acerca do sentido da vida é que esta gira em torno do absurdo. Vivemos embrulhados em palácios, com desejos de corpos e poder, cantamos à memória de heróis e antepassados, matamos para defender o bom nome ou para garantir uns cobres mas, no final, nada disso importa: valar morghulis («todos os homens têm que morrer») ou, no refrão metafórico, winter is coming («o inverno está a chegar»). A série mergulha-nos num realismo (?) violento, que põe em confronto, de um lado as nossas motivações e discursos (políticos, morais, religiosos) e do outro a vida biológica crua. Esta tese cortante de que todos estamos condenados à morte, nobres ou pedintes, virtuosos ou canalhas, só e nada mais, empresta à série um forte sabor cínico. Este cinismo refere-se, essencialmente, a uma desconfiança profunda a respeito das instituições sociais, políticas e religiosas; e esta desconfiança nasce de uma convicção de que, no fim de contas, tudo é regido pelo absurdo.
3.
Sem dúvida que o espírito crítico nos ajuda (ou deve ajudar) a ganhar consciência dos limites das instituições e dos nossos discursos. Sem espírito crítico, as instituições/os discursos tendem a absolutizar-se e a impor-se, muitas vezes para camuflar mecanismos habitualmente nada elevados ou nobres. O espírito crítico também nos ajuda a encarar a vida de forma mais adulta: sim, somos frágeis (moralmente, intelectualmente, socialmente e, claro está, biologicamente). Por algum motivo (ou vários), em vez de nos trazer vontade de viver, certas expressões do espírito crítico parecem ter descambado em pessimismo. Sem negar o valor e necessidade crítica das distopias, que nos permitem reflectir sobre o real através do choque com cenários sombrios, creio ser urgente inventar uma «utopia 2.0»: uma utopia que tenha percorrido o território do cinismo (no que ele tem de iluminador e humanizador), mas sem montar aí residência permanente; uma utopia que guarde a chama de viver; uma utopia que nos conte histórias que nos dêem vontade de construir o futuro.
Não precisamos de heróis perfeitos nem de cenários cor-de-rosa; não precisamos de sistemas unitários e uniformizantes. Mas precisamos, isso sim, de horizontes que nos estimulem a uma reflexão sobre quem gostaríamos de ser e o que podemos fazer, pluralmente, para lá chegar. Sem espírito crítico, a utopia pode alienar; com espírito crítico, a utopia é uma urgência política e espiritual.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.