Há uns dias assisti, num qualquer canal de televisão, a uma reportagem sobre a Associação Rugby com Partilha e ao trabalho fantástico que fazem em algumas prisões portuguesas. É mais um exemplo de um dos vários projetos que apostam no desporto para promover a integração social. O rugby “presta-se” bem a isso. Em primeiro lugar, por ser um desporto coletivo, em que todos percebem o papel da individualidade no sucesso do todo, depois, o respeito pelo adversário, pela equipa de arbitragem, a superação dos próprios limites, a disciplina, o companheirismo, a humildade, entre muitos outros valores que vou vendo e ouvindo dos vários treinadores que os meus filhos foram tendo ao longo dos vários escalões pelos quais já passaram.
Voltando à reportagem, chamou-me especialmente à atenção o testemunho de uma das reclusas que dizia que na prisão tinha duas opções, ou vivia na prisão ou vivia a prisão. E como isto muda a vida de uma pessoa. Vejo isso todos os dias no bairro onde trabalho, ou se vive no bairro ou o bairro. Viver a cadeia ou o bairro significa entrar no ‘esquema’. Viver na cadeia ou no bairro significa querer fazer diferente.
Todos os dias entram no meu gabinete pessoas a pedirem para lhes baixar mensalidades porque não têm dinheiro para a satisfação das necessidades básicas, quando sei que isso não é verdade; pessoas que me pedem para ajudá-las a ‘dar a volta’ ao sistema para atingirem um fim, muitas vezes, muito válido; pessoas que reclamam um direito sem lhe ver qualquer dever associado. Todos os dias entram no meu gabinete pessoas que, por mais voltas que deem, por mais contas que façam, não têm dinheiro para pagar todas as suas despesas; pessoas a viverem completamente sozinhas mesmo quando cheias de gente à sua volta; pessoas que querem trabalhar mas que, sem apoio de outro adulto e com crianças a seu cargo, têm dificuldade em conciliar os vários horários. Todos os dias entram no meu gabinete pessoas a quererem viver o bairro e pessoas a quererem viver no bairro.
Sabemos que os ciclos de pobreza tendem a reproduzir-se, sabemos que há famílias com uma estrutura dissipativa como diria Prigogine, ou seja, quando sujeitas a perturbações permanentes, encontram um equilíbrio no desequilíbrio e, por isso, se tornam tão resistentes à mudança. Por outro lado, sabemos que há famílias que querem mudar, que precisam e pedem ajuda. É por umas e por outras que nascem projetos como o Rugby com Partilha, para ajudar as pessoas a acreditar que é possível, sempre, recomeçar.
E o que é o nosso ponto de partida? É a consciência de quem somos, de quais os nossos valores, do que nos move e de qual o nosso ideal
Há uns anos fiz uma formação avançada na Universidade Católica. Na altura o professor apresentou-nos um slide que me deixou a pensar e que acabou por me pôr a refletir sobre toda a minha intervenção profissional até então. No referido slide, anunciava o professor que mais importante que o ponto de chegada é o ponto de partida. Para mim, que sou muito organizada, que tenho listas e folhas de excel para tantos aspetos da minha vida, que dei durante alguns anos a cadeira de metodologia de projeto no curso de Serviço Social, aceitar que mais importante que os objetivos é o ponto de partida não foi imediato. Mas, pensando bem, na verdade, todos os grandes acontecimentos da minha vida não foram planeados nem projetados em folhas excel.
E o que é o nosso ponto de partida? É a consciência de quem somos, de quais os nossos valores, do que nos move e de qual o nosso ideal. Se estivermos alinhados com isto e fizermos o caminho em coerência, chegaremos a bom porto com certeza. Para mim, enquanto assistente social, esta mudança de perspetiva fez toda a diferença. Esperar das pessoas objetivos de vida sem a consciência de quem são deixou de me fazer sentido. Antes de tudo, há que ajudá-las a perceber se querem viver o bairro ou no bairro. E mesmo que a escolha já tenha sido outra, e mesmo que já tenha havido percursos de vida difíceis e dolorosos, é sempre importante lembrar e ajudar as pessoas a tomar consciência que temos a oportunidade de redefinir o nosso ponto de partida a cada minuto, há sempre a oportunidade de recomeçar.
E enquanto ajudo os outros tomo, também eu, consciência da minha necessidade de recomeço e é, por isso, que gosto tanto do que faço! Estamos em tempo de Quaresma, um tempo favorável para, a cada dia, recomeçarmos. O recomeço supõe uma abertura esperançada em relação ao hoje, encarando-o com a pobreza e a ousadia de quem aceita, depois de ter percorrido já uma estrada, considerar que está novamente, e que estará até ao fim, a viver sucessivos pontos de partida. (José Tolentino Mendonça, O caminho e a estalagem)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.