Poesia na sociedade do cansaço

Nesta nova sociedade do cansaço, dominada pela vertigem da imagem e da notícia, a palavra da poesia pode ter a virtualidade de desencadear nos leitores um efeito de desaceleramento e de silêncio, uma atmosfera de calma e de introspeção.

“Na casa da poesia há cantos obscuros / em que nos podemos esconder como se não precisássemos / de luz.” Assim se inicia o primeiro poema – “A casa da poesia” – do cativante livro de Nuno Júdice, Regresso a um Cenário Campestre (2020), distinguido há semanas com o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (APE).

No atual contexto em que vivemos, ninguém fica indiferente ao contínuo ruído mediático, entontecedor e feérico, que preenche grande parte do nosso dia a dia, sobretudo urbano, nestes arrastados tempos de pandemia. Como também somos progressivamente contagiados por um cansaço acumulado, pelo interminável fluxo noticioso, pelas regras sanitárias e pelo reflexo de tudo isso ao nível do mundo do trabalho e das relações interpessoais.

Ora, nesta nova sociedade do cansaço, dominada pela vertigem da imagem e da notícia, pelo cansativo efeito de zapping, pela bulimia sentimental e pela auto-referência narcísica, entre muitos outros sintomas, a palavra da poesia pode ter a virtualidade de desencadear nos leitores um efeito de desaceleramento e de silêncio, uma atmosfera de calma e de introspeção. Como sugerido pelo poema inaugural do livro de Nuno Júdice, lido nesta clave existencial, a poesia pode proporcionar-nos os recantos inesperados e a sombra afável e iluminadora – “Só, / nos cantos obscuros, as sombras dão outro sentido / ao que vemos”. Há sombras ambivalentes, que acordam memórias ou conferem outros sentidos.

Pode a poesia ser um desafio ou convite para a descoberta de “outro sentido”? Pode a poesia ter uma vocação reflexiva, filosofante até, repleta de imagens e de intuições racionais, no seu “trabalho mental”?

Pode a poesia ser um desafio ou convite para a descoberta de “outro sentido”? Pode a poesia ter uma vocação reflexiva, filosofante até, repleta de imagens e de intuições racionais, no seu “trabalho mental”? “Um espírito filosófico procura a raiz / das coisas no fundo do ser.” Tudo depende também da capacidade de acolhimento do leitor, a quem se exige a disponibilidade necessária para a viagem por entre a sombra e a luz da existência. Viagem em demanda do rosto do Outro, do Amor ou da “luz da madrugada”, de um cais ou estação de encontro, mesmo quando se empreende uma “viagem nocturna” – em alguma situação existencial fazemos o papel do “passageiro que atravessa a carruagem à procura / de alguém que perdeu ao longo da sua vida”.

Nesse caminho de (auto)descoberta, poderemos ter diversas exemplos e companhias inesperadas, como as pessoas que amamos no dia a dia; as “santas místicas”, rezando de joelhos em todo o despojamento, em demanda do “caminho do êxtase”; ou a mulher anónima que, na paisagem rural e melancólica, prepara a massa do pão. Também poderemos aprender com a Natureza, como a lenta sabedoria de uma árvore, cujos anéis do tronco tem “a idade dos profetas”.

Os tempos de pandemia desnudaram muitas das nossas fragilidades. “Instruções para sobreviver a uma quarentena” é um dos poemas que equaciona o problema axial da comunicação humana em tempos de crise, sobretudo na sua dimensão afetiva: “Não precisas de pensar em urgências, em inúteis ansiedades, / no tempo em que parece não chegar ao fim, e segura nas tuas mãos a forma / das mãos que por ela passaram, como se o tempo não passasse.” E todo o poema “Epidemia” é uma celebração do desejo e do amor, enquanto doce contágio, contrariando a solidão – “Passa de um para o outro através do olhar, de uma palavra, / de um toque de mãos; por vezes, basta um leve suspiro para adivinha a febre, e atrás dele descobre-se que / não é preciso cura nem tratamento.”

Num “Balanço” sobre o quotidiano que nos cabe viver, sobressai a pulsão de uma prece, centrada no efeito nefasto dos que não amam nem descobriram o prazer da beleza gratuita: “Se eu rezasse, pediria compaixão / para os que não amam, para os que não sabem / para onde olhar quando estão sós e lhes falta / um rosto amado na memória, para os que / olham para uma flor e só pensam no dia em que / irá morrer.”

O amor não é uma panaceia ou a “única salvação”, mas sem ele resta o vazio e a ausência de um horizonte de luz. Os poetas de todos os tempos o sublinharam – omnia vincit amor” (o amor tudo vence), da célebre Écloga X de Virgílio. Recorde-se que para os latinos o verbo “amare” também abarcava as relações afetivas em geral, incluindo a amizade. Uma coisa é manifesta nesta poética: no dicionário do amor, cada palavra tem um “sentido próprio / quando é o próprio amor a dizê-la.” Assim, viver o Amor transforma a própria linguagem.

O amor não é uma panaceia ou a “única salvação”, mas sem ele resta o vazio e a ausência de um horizonte de luz.

“A vida pode ser como a viagem a que / nos agarramos, muitas vezes sem saber o que estamos / a fazer. Tudo corre muito depressa, e as coisas / passam sem que as vejamos; de outras vezes, porém, é lento / o andar, e podemos saborear o que acontece.” – lê-se no poema “Filosofia de vida”. Façamos a aprendizagem da lentidão, condição imprescindível para saborear o que vale a pena. E em tempos da peste, que hão-de ficar na nossa memória, fica a exortação para a leitura da poesia. E com a poesia, o convite à reflexão serena sobre o essencial – a busca de um sentido, a redescoberta da linguagem, a procura do Amor, a descoberta do Outro, o sentido da oração.

Nenhum ser humano é uma ilha, ninguém pode viver em solidão; a vulnerabilidade das relações interpela-nos; a Natureza dá-nos múltiplas lições de beleza e de serenidade; impõe-se uma nova cultura dos afetos na nossa passagem pela existência. É urgente regressar à poesia das origens e a cenários campestres, redescobrindo novas formas de harmonia. Neste contexto, não são naturalmente desprovidas de significado as evocações de Orfeu e de Homero.

No “fio da clepsidra” que mede a nossa existência, e quando a casa comum em que vivemos pode parecer uma habitação em ruínas, é imperioso regressar ao essencial – nas opções de vida e na linguagem, nas atitudes e no amor, sempre num horizonte de humaníssima alteridade, sob a forma de omnipresente lema existencial: “não evitem o olhar que vos procura”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.