A Quaresma começa com uma proposta difícil: a consciência da fragilidade. Não especialmente, embora também, da nossa fragilidade moral – mas de uma fragilidade propriamente ontológica, muito mais difícil até de recordar, e mais ainda de viver. Uma fragilidade estrutural: somos mortais. Nós, os nossos pais, os nossos filhos, os nossos amigos.
Em momentos em que a morte se aproxima das nossas vidas, e sobretudo quando nos apanha desprevenidos, experimentamos esta fragilidade de forma tremenda. Todos preferiríamos ser poupados a essa dor. E pode até acontecer que alguns vão sendo. Muitos não serão. Mas a todos, a Igreja propõe, a cada ano, pelo menos um dia em que aceitem o confronto com a sua condição mortal.
Em termos lógicos, é fácil perceber porquê: se a morte não fosse um problema, a ressurreição não seria a solução. “E se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens” (1Cor 15, 19).
Na conversão, neste voltar-se para Deus e reconhecê-lo realmente como Deus, não está só, nem principalmente, em causa um certo auto-aperfeiçoamento. O que nos foi prometido foi vida, e vida em abundância, precisamente aquilo que não conseguimos dar a nós próprios.
Percebe-se por que razão esta dimensão da fé pode ficar esquecida na vida habitual, sobretudo para os habitantes de um dito “primeiro mundo” do terceiro milénio. Encarar a morte é difícil porque dói mas também porque implica ir em sentido contrário dessa vida habitual, em que as preocupações são crescer, fazer, acontecer. Mas a proposta da quaresma é de jejuar, orar, dar esmola. Em certa medida, precisamos de nos fazer desconfortáveis, num mundo que tem todos os confortos para oferecer, mas que, na verdade, não é o nosso. Quem não está doente, não precisa de um médico. Se não nos reconhecermos mortalmente doentes, não reconheceremos em Jesus o nosso Salvador.
Poder-se-ia entender esta “doença” apenas como uma certa imperfeição ou fragilidade moral – não estamos à altura dos nossos ideais, percebemos como o nosso amor é curto, como nos cansamos, como há sempre duas ou três bem-aventuranças que continuam a soar exigentes demais, como não conseguimos ser santos sem Deus. Mas pensar só assim ainda é ter em vista apenas esta vida, “ter esperança em Cristo só para esta vida”. Ainda é pouco demais. Até porque mesmo a perfeição moral muito pouco poderia contra a morte.
A imposição das cinzas na nossa cabeça na primeira quarta-feira da quaresma pretende ajudar-nos a recordar que é porque “somos pó e ao pó havemos de voltar” que precisamos de nos “converter e acreditar no evangelho”. Na conversão, neste voltar-se para Deus e reconhecê-lo realmente como Deus, não está só, nem principalmente, em causa um certo auto-aperfeiçoamento. O que nos foi prometido foi vida, e vida em abundância, precisamente aquilo que não conseguimos dar a nós próprios.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.