Pluralismo, um passo à frente da tolerância

Se nos regermos pela lei suprema do amor fraterno, o ponto de partida da nossa relação com o próximo não pode começar na tolerância. Elevemos a fasquia.

Durante milhares de anos, as barreiras marítimas que separavam continentes, separavam também os povos que os habitavam, deixando que evoluíssem na sua individualidade, desenvolvendo tradições, hábitos e crenças que os caracterizavam e faziam parte da sua identidade. Com o progresso económico e tecnológico, manifestado na invenção da roda, na revolução industrial ou no surgimento das redes sociais, estes povos foram-se aproximando. O mundo tornou-se um espaço pequeno. As pessoas já não vivem isoladas nem rodeadas apenas de pessoas idênticas e que pensam da mesma maneira.

Em todas as suas formas e manifestações, a diversidade é hoje parte integrante do nosso dia-a-dia. No entanto, nós não desenvolvemos ainda – pelo menos na sua plenitude – o conforto intelectual e emocional para viver e celebrar a diferença. Ouvir um vizinho falar uma língua impercetível, vê-lo usar roupas diferentes ou sentir o cheiro que vem da sua cozinha, por vezes ainda despoleta em nós um conjunto de juízos que vai muito além do que efetivamente conhecemos sobre ele.

Num mundo que se afigura cada vez mais pequeno, o caminho terá necessariamente de ser o de aprendermos a viver em comunidade na diferença; a reconhecermos que as nossas verdades não são absolutas, mas relativas e mutáveis. Só quando aprendermos a aceitar que existem outras opiniões para além das nossas – e só quando as quisermos escutar verdadeiramente – é que começamos a construir uma sociedade renovada e em progresso.

“Tolera-se” a dor, “tolera-se” o frio, como quem está a viver no limiar do suportável. Mas será este o sentimento que queremos ter nas fundações das nossas relações?

Mas esta proposta exige mais do que trabalhar a tolerância, pois ainda que seja um bom indicador de que caminhamos em direção a sociedades mais coesas e pacíficas, não é suficiente. “Tolera-se” a dor, “tolera-se” o frio, como quem está a viver no limiar do suportável. Mas será este o sentimento que queremos ter nas fundações das nossas relações? Se nos regermos pela lei suprema do amor fraterno, o ponto de partida da nossa relação com o próximo não pode começar na tolerância.

Elevemos a fasquia. As nossas comunidades cada vez mais diversas querem-se plurais. O pluralismo vai além da tolerância pois procura uma transformação da sociedade para que acolha a diversidade; vê a diversidade, que é mais do que multiculturalismo, como algo positivo. Mais do que uma mera convivência polida entre pessoas, o pluralismo é profundo e compartilhado. Numa sociedade plural, pessoas de diferentes contextos culturais mantêm as suas tradições, têm diferentes crenças, mas aceitam-se e respeitam-se mutuamente e querem-se bem.

Elevemos a fasquia. As nossas comunidades cada vez mais diversas querem-se plurais. O pluralismo vai além da tolerância pois procura uma transformação da sociedade para que acolha a diversidade; vê a diversidade, que é mais do que multiculturalismo, como algo positivo.

É natural que nos interroguemos sobre como manifestações tão diferentes do bem comum podem coabitar na mesma comunidade. Imaginemos uma sociedade plural não como uma guerra de linguagens que colidem, mas como uma sociedade onde todos temos de ser bilingues. Há uma linguagem comum de cidadania que todos temos de aprender em prole do bem comum, mas que nos permite manter uma variedade de linguagens locais que nos ligam aos nossos círculos de proximidade. E quando nos predispomos a refletir sobre o que é esta linguagem comum que todos falamos, percebemos que esta consegue abarcar muito mais do que aquilo que à partida os nossos preconceitos nos deixariam imaginar.

O que distingue o hijab que cobre a cabeça da mulher muçulmana do lenço da lavradeira minhota ou do véu do hábito de algumas ordens religiosas? A razão para a família chinesa ter a loja aberta todos os dias da semana, 365 dias por ano, chegando a ser espaço de convívio familiar, não será a mesma que levou os nossos emigrantes na década de 60 a ‘renegar’ a gerações de trabalho no campo e a partir com a ambição de dar mais oportunidades às gerações vindouras do que aquelas que tiveram os seus antepassados?

Sempre que houver dúvidas sobre a possibilidade da criação desta linguagem comum, não desistamos. Porque a lista que comecei é longa e por cada linha que acrescentamos, por cada comentário xenófobo que evitamos, constrói-se um pouco mais de terreno para diálogo, e diálogo leva a entendimento e paz. Apesar das nossas diferenças, façamos o exercício constante de identificar o que nos une. Quem o pede é o Papa Francisco, na sua visita ao Iraque:

“Só se conseguirmos olhar-nos uns aos outros, com as respetivas diferenças, como membros da mesma família humana, é que podemos iniciar um efetivo processo de reconstrução e deixar às gerações futuras um mundo melhor, mais justo e mais humano”. Pede-nos que falemos a língua da dignidade, respeito e compaixão, do que é ser um ser humano, algo que todos partilhamos.

Mais do que nunca, é fundamental falar de pluralismo pois é o ponto de partida para combater e evitar os conflitos a que o mundo assiste por toda a parte, inclusive nas nossas comunidades.

Mais do que nunca, é fundamental falar de pluralismo pois é o ponto de partida para combater e evitar os conflitos a que o mundo assiste por toda a parte, inclusive nas nossas comunidades. A História da Humanidade está repleta de episódios de intolerância e discriminação que nos envergonham, mas também de exemplos de acolhimento, valorização e paz que nos devem inspirar a agir. A História tem um grande poder para moldar o futuro, mas é através das ações individuais de que cada um vamos ser capazes de o fazer – não apagando o passado, mas levando tudo e todos connosco, perdoando se for necessário e com a certeza de que, como Deus disse a Abraão, “serão benditas todas as famílias da terra” (Gen 12, 3).

Fotografia de Steve Johnson – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.