Pequeno ensaio ligeiramente coloquial sobre a criatividade

E, por se tratar de um fracasso do homem – na medida em que é intangível o momento em que não existia um verso e passa a existir –, nunca se apaga, porque é incêndio que se ateia no coração de cada um. E, como tal, é único e irrepetível.

Percorrendo a obra de inúmeros artistas noto, sem nenhuma aptidão ou pretensão académica particular, que existe uma significativa obsessão pelo tema da criatividade ou, se preferirmos, da inspiração. É, assim como a questão de Deus – cuja origem é sempre envolta em mistério e dúvidas –, um tema difícil de tratar. A criatividade é, para muitos – e aqui novamente se assemelha ao que é ascético e sobrenatural –, uma nuvem luminosa, clandestina, que desce sobre os mais sortudos, os mais atentos ou dotados emocionalmente e é, para outros tantos, uma atividade diligente e cerebral, como a matemática, a advocacia ou passagem sistemática de enlatados num leitor de infravermelhos em que o mais oculto segredo está à vista de todos e chama-se repetição.

Para uns, camonianos de gema, fiéis às musas, o poema já vem escrito e é de quem o agarrar. Para outros, as canções nascem do talento do operário, que, tal e qual uma equação de quarto grau, manuseia as palavras e a escala musical, equipado de uma vertiginosa inclinação para o sangue, suor e lágrimas que a criatividade demanda. Dizem eles que o melhor artista é o que mais atulhou de papel amarrotado o caixote do lixo. Há também posições moderadas, mas creio que no fim de contas todas se resumem à teoria 1 e 2, respetivamente: a criatividade brota da inspiração; a criatividade advém do trabalho. Ainda assim, por mais que tateemos, não há maneira de olhar de frente para tão impetuosa e estranha figura. Não sabemos se é terrena ou divina, se nos pertence ou vem de fora, ou se é tudo numa coisa só, intocável na sua totalidade. Mas é possível, recorrendo a alguns dos mais bafejados artesãos da matéria humana, encontrar pequenas migalhas caídas no caminho, ainda que permaneça inacessível o desejado apocalipse.

Há também posições moderadas, mas creio que no fim de contas todas se resumem à teoria 1 e 2, respetivamente: a criatividade brota da inspiração; a criatividade advém do trabalho.

Sophia de Mello Breyner, no poema Liberdade, apresenta-nos uma posição aparentemente contraditória:

 

“O poema é

A liberdade

 

Um poema não se programa

Porém a disciplina

— Sílaba por sílaba —

O acompanha

 

Sílaba por sílaba

O poema emerge

— Como se os deuses o dessem

O fazemos”

 

Começa com o verso irrefutável: “o poema é a liberdade”, seguindo-se a confirmação da teoria 1: “o poema não se programa”. Enquanto fazemos que sim com a cabeça, excitados por nos ser validada a primeira tese, o poema prega-nos uma rasteira a pés juntos com uma adversativa que conclui agora a teoria 2: “porém a disciplina, sílaba por sílaba, o acompanha”. Apesar deste choque frontal – não se aflija o mais confuso com tamanho paradoxo –, o poema é conciliador, e culmina numa belíssima conjugação das duas teorias: “Sílaba por sílaba/O poema emerge/ Como se os deuses o dessem/O fazemos”.

Ana Luísa Amaral, numa entrevista concedida pouco antes da sua morte, contava-nos uma história coincidente com uma das teorias. Dizia ela que o poema aparece escrito a grande velocidade, isto é: o poema demora pouco tempo a ser imprimido no papel. E nós, contentes da vida por termos uma resposta ligeiramente mais clara, neste caso, a favor da teoria 1, somos confrontados com o resto da história, agora já debruçada na trincheira da teoria 2. Parafraseio o que diz a poeta: “o poema escreve-se rápido, vem num ápice. O que demora mais tempo é a sua fermentação, o limar de arestas e a contínua eliminação do que era acessório e parecia essencial.”

Ainda a propósito da interminável discussão que aqui descrevo, atiro mais achas para a fogueira disfarçadas de versos de um poema da própria Ana Luísa Amaral chamado Espionagens verbais:

 

Anda desde manhã uma palavra

a perseguir-me, a espreitar-me de longe

em atitude nítida de pose,

em clara posição de desafio.

 

Sugere-se ligeira e disfarçada,

depois foge como uma Mata-Hari

lexical. Não sei o que em mim vê:

não tenho alta patente nem estatuto.

 

E contudo ela anda por aí.

Sonora e inaudível, surge-me

do silêncio e dos ruídos longos,

brevíssima nos cantos – e perigosa.

 

Lá passou outra vez. E anda nisto

desde que me vesti e vi o sol.

Nada a faz desistir: nem a tarde

a cair, nem a minha ameaça de fuzis”.

 

Se atentarmos no poema, reparamos novamente que há uma contradição, a mesma que havia em Sophia. Por um lado, o poema emerge como poema de vocação, como se existisse ou não no poeta uma capacidade inata inclinada para a poesia, um dom natural ou um talento (“não tenho alta patente nem estatuto”). E o facto de a palavra “palavra” estar posicionada fora do poeta (“a perseguir-me, a espreitar-me de longe”), num lugar que não a sua cabeça ou o seu coração, também contribui para a formulação de que a criatividade é exterior ao homem (teoria 1). Contudo, por outro lado, Ana Luísa Amaral decide dar à palavra “palavra” as suas próprias qualidades humanas de lutadora, porque, tal como a palavra que a vê e a observa, ela não desiste de a olhar, e por isso, desde manhã até à noite, passa um dia inteiro – como qualquer trabalhador esforçado – a fixá-la nos olhos, conforme se confirma no verso “e anda nisto desde que me vesti e vi o sol”. Neste caso, parece já um argumento a favor da teoria 2: o poeta, tal como a palavra, nunca desiste de a procurar. É um trabalho de equipa, a poesia.

Samuel Úria é igualmente um moderado nesta matéria, pelo menos na canção Triunvirato, onde se reconhece, sozinho, incapaz de terminar uma canção. Por essa razão, faz-se mendigo musical e pede um refrão a uma entidade (suponho que mais ou menos imaterial) chamada “Torre da Canção”. Como se existisse uma torre do tombo de canções inéditas, Úria reclama do seguinte modo: “Dá-me um refrão, Torre da Canção, onde mora um monge mudo. Acorde secreto, diz-me tudo”. Vamos ver mais à frente que é comum o autor se sentir incapaz. Aqui é muito evidente. Úria confessa a necessidade de auxílio para compor uma canção, e compreende que há um acorde qualquer, “secreto”, que o próprio desconhece. Por isso, implora, e faz dessa súplica matéria criativa. Se o criador é o que mais estende a mão, mendigando cansado por uma palavra, um verso ou uma melodia, isto é, se é o que mais se empenha (teoria 1), é também o privilegiado com acesso direto ao paraíso das obras de arte já concluídas, ou seja, sabe que pela sua frágil e abandonada humanidade não consegue terminar sozinho uma canção (teoria 2). Este cenário faz de Úria um autor pouco comedido: pede muito, implora até, de tabuleiro na mão, para receber em troca um refrão a pronto.

Se o criador é o que mais estende a mão, mendigando cansado por uma palavra, um verso ou uma melodia, isto é, se é o que mais se empenha (teoria 1), é também o privilegiado com acesso direto ao paraíso das obras de arte já concluídas, ou seja, sabe que pela sua frágil e abandonada humanidade não consegue terminar sozinho uma canção (teoria 2).

Conta-se que Paul Simon rastejava pelo chão de um quarto de hotel, a varrer tapetes, à procura não de uma caneta, mas de uma palavra para terminar uma canção. Prova que o autor suja as mãos de sangue e pó, e o que escreve é fruto de uma labuta intensa. O mesmo Paul Simon que, a propósito do conhecido refrão “lie la lie”, da canção The Boxer, que toda a gente canta em uníssono, revela o seu fracasso – como Úria – quando é questionado sobre se o “lie” era acerca de Bob Dylan, o cantautor que não usava o seu nome verdadeiro: “No, I never heard that. I thought that ‘lie la lie’ was a failure of writing. I didn´t have any words!”. Isto antes de descrever que o que desencadeou esta canção foi a frase bíblica “Workman´s Wages”, o mesmo processo de American Tune, uma música que é, no fundo, uma filha do cancioneiro popular orgulhosa de ter nascido do ventre da Paixão Segundo São Mateus, de Bach. Neste exemplo, The Boxer é não só resultado de uma pesquisa profunda, como também de um inexplicável mistério que transformou um erro num dos refrões mais conhecidos da história. Porque, de facto, é preciso procurar muito para não encontrar nada (teoria 1) e, mesmo assim, sair um genial e inspirado “lie la lie” que toda a gente do mundo canta de cor (teoria 2).

Porque, de facto, é preciso procurar muito para não encontrar nada (teoria 1) e, mesmo assim, sair um genial e inspirado “lie la lie” que toda a gente do mundo canta de cor (teoria 2).

Torna-se claro que nada é muito claro no périplo que discorre sobre a natureza da criatividade ou da inspiração. Há uma floresta densa por desbastar. No entanto, é-nos apontado um caminho: o processo criativo é tão mais vigoroso quanto menos nítida for a fronteira entre a vocação, o talento, o empenho e os calos nas mãos. O processo criativo depende da confusão constante, mas vigilante, entre o silêncio e o ruído, o coração singular de cada um e a realidade exterior, o diálogo (que muitas vezes é confronto) entre o cânone e a contemporaneidade, as emoções e a razão, a história de vida e a imaginação, a vocação e o afinco. É também um desejo ardente de fazer um corte na história e simultaneamente uma homenagem aos sábios que tornaram fértil o lugar que permite reconstruir uma ruína sempre intacta. A criatividade é, portanto, um fogo posto, necessário, que tem, afinal, causas desconhecidas. Ou vice versa. E, por se tratar de um fracasso do homem – na medida em que é intangível o momento em que não existia um verso e passa a existir –, nunca se apaga, porque é incêndio que se ateia no coração de cada um. E, como tal, é único e irrepetível.

O processo criativo depende da confusão constante, mas vigilante, entre o silêncio e o ruído, o coração singular de cada um e a realidade exterior, o diálogo (que muitas vezes é confronto) entre o cânone e a contemporaneidade, as emoções e a razão, a história de vida e a imaginação, a vocação e o afinco.

Termino com um excerto de Cartas a um jovem poeta: “O ritmo mantém o seu perpétuo pulsar. Às vezes, parece diminuir e ficar reduzido a nada; permite-lhe comer, dormir, conversar com outras pessoas. De súbito, desperta de novo, cresce e arrasta tudo o que a sua mente contém numa só dança irresistível. Embora já esteja a tirar uma bota e esteja quase a tirar a outra, não pode continuar a despir-se. Precisa de escrever imediatamente, impelido por esta dança. Agarra em caneta e papel (…). A sua página está amarrotada numa bola e a caneta tem o bico enterrado no tapete. Se houvesse um gato à mão para atirar ao ar ou uma esposa para assassinar, este seria o momento ideal”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.