Juro que é verdade: já tinha a ideia de falar sobre o filme que este ano arrebatou o Óscar mais ambicionado antes de a pandemia se instalar.
Apesar de estarmos todos impedidos de ir ao cinema e aconselhados a não sair de casa a não ser para fazer o que for mesmo essencial (excluindo comprar DVD…), há vida para além do vírus e, sobretudo, é importante fazer planos para o tempo em que haverá vida depois do vírus.
E, no entanto, tanto no filme como no momento atual, estamos a falar sobre parasitas. Recorrendo à wikipedia, aprendemos que “os vírus são parasitas obrigatórios do interior celular e isso significa que eles somente se reproduzem pela invasão e possessão do controle da maquinaria de auto-reprodução celular”. São, portanto, entidades que apenas sobrevivem à custa dos hospedeiros. Na vida real, o vírus só progride graças ao sistema em que se instala. No filme, e tentando não contar muito da história para não estragar a descoberta a quem não tiver ainda visto, temos exatamente o mesmo. Só que os parasitas, no ecrã (grande ou pequeno), são pessoas. Acontece que saber quem é parasita e quem é hospedeiro é uma das questões interessantes que este filme coloca.
Um grande amigo que já partiu tinha uma forma de discernimento muito curiosa para avaliar se um filme (ou um livro ou qualquer outra obra) era bom ou mau: fazia com que fossemos pessoas melhores? Mudava alguma coisa em nós? Interiorizei esta forma de olhar para as obras artísticas e adaptei um pouco – fico a pensar naquilo que vi/ouvi e isso faz-me aprender alguma coisa ou pensar em algo ou de uma maneira que não tinha pensado antes? Usando este paradigma, considero Parasitas um bom filme. Um ótimo filme. Ficou a ressoar durante vários dias no meu espírito a vários propósitos.
Um grande amigo que já partiu tinha uma forma de discernimento muito curiosa para avaliar se um filme (ou um livro ou qualquer outra obra) era bom ou mau: fazia com que fossemos pessoas melhores?
O filme é também um pouco como alguns de nós encarámos este vírus: levezinho no princípio mas tornando-se depois num filme verdadeiramente negro. Não se adivinha durante a primeira metade de Parasitas o desfecho que irá ter – o tom é, inicialmente, de comédia ligeira. Filmes à parte, quem diria, há poucos dias, que estaríamos a viver desta maneira, encerrados em casa, com movimentos limitados?
Mas a grande mensagem de Parasitas é talvez a da importância de ter planos. Quem não tiver planos está sujeito a que tudo lhe possa acontecer. Ou, como na frase atribuída a Séneca, “barco sem destino não sabe o que é vento favorável”. Várias vezes ouvi também uma variação desta frase ao P. Alberto Brito: “barco sem rumo não sabe o que é vento contra”. Sem saber o que é bem, o que é mal, o que nos faz bem, o que nos faz mal, vamos andando, ao sabor da maré, e isso pode ser a porta por onde o mal entra na nossa vida. Insidioso. Discreto. Como um vírus. Os planos não nos protegem dos imponderáveis mas podem ajudar-nos a lidar com eles.
Em tempo de paragem obrigatória, a verdade é que nem tudo é mau. Uma das oportunidades que esta crise nos oferece é precisamente a treinarmos a nossa capacidade de planear. Planear, desde logo, o dia-a-dia tão diferente das rotinas anteriores, seja por ter crianças em casa todo o dia, seja por necessidade de orientar as tarefas de formas diferentes, com novos desafios se temos de estar no local de trabalho ou se se impõe desmaterializar até a presença física. Mas planear também para a frente, aproveitando a circunstância particular de eventualmente termos mais tempo entre mãos. Parasitamos ou desparasitamos o que nos está a consumir?
Fotografia de Med Badr Chemmaoui – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.