Papa Francisco, capitalista?

A afirmação de uma identidade individual, que apenas satisfaz a ambição de quem impõe o seu querer particular ao mundo, não permite que a singularidade manifestada seja acolhida pelos outros como um dom.

Desde a sua eleição para a Cátedra de Pedro, muito se tem especulado sobre a ideologia política, ou económica, que o Papa Francisco terá como sua. Se, no início do atual pontificado, palpitavam rumores da sua proximidade com a ditadura dos anos oitenta na sua Argentina natal, agora passou a ser mais recorrente apresentarem-nos Bergoglio como um progressista, por vezes próximo de radicais marxistas. No entanto, se nos afastarmos deste mediatismo, onde tudo se reduz ao preto ou ao branco, talvez possamos escutar o que ele próprio diz no seu magistério.

Recentemente, no passado dia 2 de Dezembro, o Papa recebeu no Vaticano um grupo de empreendedores franceses que assumem a sua fé católica. Pelo discurso proferido, é fácil compreender, para quem ainda não o saiba, que Francisco está longe de condenar a chamada economia de mercado, no que toca aos seus princípios fundamentais. Em vez de condenar a iniciativa e propriedade privadas, ou a persecução de uma atividade lucrativa, o Papa apela os empresários católicos a serem cada vez mais conscientes do seu papel na promoção da justiça e da sustentabilidade económica e ecológica.

Um discurso semelhante foi também proferido, quando, no passado 11 de novembro, o Papa recebeu alguns membros do Conselho em prol de um capitalismo inclusivo. Fruto do Fórum Global “Fortune and Time” de 2016, este organismo procura “tornar o capitalismo num instrumento mais inclusivo para o bem estar humano integral”, apelando à responsabilidade de todos os agentes envolvidos.

Em vez de promover ideologias separadas das pessoas e dos seus contextos concretos, Francisco visa, muito pelo contrário, o “progresso integral da pessoa humana.” Por um lado, não se trata apenas de mudar as estruturas, mas de converter realmente as pessoas que interagem num sistema. Por outro lado, apesar de todas as limitações do sistema liberal e das falhas de mercado, que requerem evidentemente uma regulamentação ao nível das estruturas, o sistema que comumente chamamos de capitalista também proporciona possibilidades de desenvolvimento que devemos saber aproveitar.

Evidentemente que o Papa não é capitalista, nem comunista ou socialista, no sentido mais estrito dos termos. Mas Francisco também não cai no maniqueísmo ideológico de quem só encontra aspectos negativos na dita economia de mercado. Como seria de esperar, Francisco limita-se a defender e a promover a Doutrina social da Igreja. É como cristão que ele acolhe quem ambiciona fazer esta quadratura do círculo, onde o “capitalismo” se torna mais “inclusivo”. Movido pela visão cristã do ser humano e do dom da criação, o Papa recorda-nos que o desenvolvimento não pode ser medido em termos exclusivamente económicos: trata-se de um desenvolvimento integral, que engloba, sem a absolutizar, a dimensão económico-financeira. “Mais inclusivo” significa “favorecer a promoção de cada pessoa humana.”

Evidentemente que o Papa não é capitalista, nem comunista ou socialista, no sentido mais estrito dos termos. Mas Francisco também não cai no maniqueísmo ideológico de quem só encontra aspectos negativos na dita economia de mercado.

Nestes dois discursos recentes transparece assim, por parte do Papa Francisco, a vontade de conciliar a liberdade e a singularidade de cada pessoa com a sua inclusão num todo do qual fazemos parte. Ao falar de um humanismo “integral” e “integrador” (cf. LS §141) ou de um “capitalismo inclusivo”, Francisco procura agregar dois valores que hoje parecem muitas vezes irreconciliáveis: a singularidade de cada pessoa e a unidade entre todos nós. É neste esforço que a expressão “capitalismo inclusivo” poderá fazer sentido. Desta forma, estes discursos, que o Papa dirige aos agentes económicos, enquadram-se num âmbito mais amplo; o âmbito da promoção do diálogo e da cultura do encontro.

Em primeiro lugar, trata-se, portanto, de saber respeitar a singularidade da pessoa que cada um de nós é: se quiserem, da nossa própria identidade. Mas, em segundo lugar, seria bom que a afirmação da especificidade de cada um de nós não se impusesse aos outros e ao mundo através da violência que nos separa.

Francisco procura agregar dois valores que hoje parecem muitas vezes irreconciliáveis: a singularidade de cada pessoa e a unidade entre todos nós.

Se, no século passado, o filósofo cristão, Jacques Maritain, publicou um livro intitulado “Distinguir para unir” (Distinguer pour unir ou les degrés du savoir, Desclée de Brouwer, Paris 1932), hoje fico muitas vezes com a sensação que a diferenciação entre as diversas pessoas as separa radicalmente, fragmentando e polarizando cada vez mais a sociedade.

Assim, é difícil congregar sinergias para a construção de um mundo, ou de uma sociedade, maior do que nós, mesmo se a partir da contribuição de todos; um mundo que precisa, mais que nunca, de uma unidade capaz de fazer face aos desafios que hoje enfrentamos. A afirmação de uma identidade individual, que apenas satisfaz a ambição de quem impõe o seu querer particular ao mundo, não permite que a singularidade manifestada seja acolhida pelos outros como um dom.

Quando o Papa mostra respeito pelo outro, na sua alteridade, não é para que ele se feche na sua própria identidade e exista sozinho ou isolado no seu pequeno grupo, contra tudo o que é diferente de si. A promoção da singularidade de cada um vem, portanto, acompanhada pelo princípio que o todo é superior às partes. As diferenças entre nós só podem ser uma riqueza quando as particularidades de cada um forem postas ao serviço de todos. As diferenças entre nós podem unir-nos na complementaridade que nos eleva a construir algo maior que a nossa simples vontade ou identidade pessoal.

A comunhão é sempre uma união entre seres distintos. E, por isso, é salutar que haja diferença. Mas a comunhão só será possível se a afirmação das diferenças entre as várias pessoas for acompanhada de um esforço de inclusão, sem esquecer, é claro, aqueles que, por maior fragilidade, não têm capacidade de se afirmar ou de se impor.

Num discurso com quase dois mil anos, São Paulo sonha a Igreja como uma comunidade de amor entre pessoas distintas no seu carisma, iguais na dignidade e unidas em seu viver: “Já não há judeu nem grego, nem escravo ou homem livre, nem homem, nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus” (Gal 3, 28).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.