O modo como a pandemia atravessou a vida do mundo e as nossas vidas pessoais neste ano de 2020 leva-nos a destacar cinco aspetos principais.
Primeiro, a pandemia enquanto fenómeno de Comunicação. Assistimos ao desencadear de um fenómeno comunicacional de enorme envergadura, pois a virose e, de seguida, a pandemia espalharam-se também como notícia. Rapidamente deu-se uma mobilização intensa do espectro mediático e de comunicação. Já tínhamos assistido a fenómenos semelhantes com as guerras, com os grandes eventos desportivos, ou com as grandes crises e catástrofes, mas a duração da agenda mediática do Covid é absolutamente invulgar. Ela iniciou-se com as primeiras suspeitas num lugar remoto chinês. Teve uma primeira chegada ao mundo ocidental através de um país – a Itália – e tal como a dívida soberana pareceu mais infeciosa no sul, ao passo que no norte pareceu sobretudo estatística. A notícia durante um certo tempo teve duas vozes protagonistas, destacando-se uma voz na OMS a enquadrá-la e outra nos EUA a negá-la imperturbável perante a devastação interna. O célebre ‘resto do mundo’ esse pareceu mais um empilhamento numérico de vítimas. A pandemia tornou-se o assunto noticioso mais quotidiano, mais assustador e mais premente.
Em segundo lugar a pandemia trouxe uma nova atitude perante a Ciência. A causa da pandemia era uma virose e, por isso, tratando-se de uma doença, o campo onde ela se situou desde o início foi o da medicina e o da ciência. Mas esta autêntica peste do século XXI trouxe uma reconfiguração à representação pública da ciência. Por um lado, a incerteza: embora nos meios académicos a consciência da incerteza na investigação científica seja assumida há muito, o certo é que, para o senso comum, ficou de certo modo abalada a imensa confiança na tecno-ciência perante a incapacidade para curar prontamente esta doença. O ‘seguro’ mundo ocidental viu-se em condição parecida à que se habituara a assistir em lugares do mundo cronicamente vulneráveis à pobreza e às doenças que há muito deveriam estar já erradicadas, como são os casos da malária e do ébola. Vimos, assim, grandes cidades e até grandes capitais do mundo ocidental tomadas pelas angustias da vulnerabilidade e desproteção sanitária que eram já tragicamente familiares a milhões de seres humanos em vários outros lugares do mundo.
Ao mesmo tempo, a ciência esforçou-se por explicar a natureza do vírus e o significado dos procedimentos estatísticos para monitorizar a propagação pandémica. Tornou-se quotidiana a sua presença nos media e os cientistas passaram a desempenhar um papel muito relevante para o público em geral e para a maior parte dos políticos a uma escala inédita. Entretanto, a rapidez a que se processou a investigação para o fabrico das vacinas, resultante de um investimento continuado e articulado entre cientistas, de novo surpreendeu e sublinhou a relevância e centralidade da ciência no mundo de hoje e no futuro.
Um terceiro aspeto tem a ver com o facto de a doença se ter transformado num fenómeno socio-político de grande envergadura. É isso que caracteriza uma pandemia e, nesse processo, à voz dos media, dos médicos e dos cientistas juntou-se a voz política de governantes e ativistas. Neste âmbito, revelaram-se ruturas económicas e as fragilidades do sistema económico global. A pandemia mostrou que o mesmo exuberante mundo globalizado da economia e da finança, tinha cavado dentro de si um abismo de fragilidade. Ficou claro que muitas das cadeias de produção e fornecimento de bens essenciais e urgentes assentavam em dependências perigosas porque demasiado longínquas, até mesmo para produtos pouco sofisticados em termos tecnológicos como foi o caso das máscaras e dos ventiladores. Tal tornou necessário repensar novos parâmetros de segurança a vários níveis, incluindo o alimentar e o da saúde e com isso também os processos de relocalização industrial.
As desigualdades entre países revelaram-se mais fortemente nas lógicas do próprio mercado de consumo.
As desigualdades entre países revelaram-se mais fortemente nas lógicas do próprio mercado de consumo. Para que um produto seja barato no ocidente, apesar dos custos do seu transporte entre continentes, muitas vezes é preciso que o desnível entre qualidade da sobrevivência e de vida entre os países seja brutal. Um exemplo é o da roupa de várias marcas de moda, cuja produção depende de mão-de-obra barata sobretudo em países asiáticos. Produzir a opulência consumista nuns sítios, custa não só a miséria de outros como, associada a ela, a imensa e desatendida vulnerabilidade à própria pandemia de enormes camadas populacionais.
Um quarto aspeto que se evidenciou foi o da resposta dos sistemas políticos à urgência das medidas governativas. A emergência da pandemia suspendeu regras e dinâmicas políticas, e desarticulou sistemas de coordenação internacional. A própria União Europeia não conseguiu uma resposta politica comum e partilhada. Foram ainda surpreendentes os movimentos de desobediência em algumas sociedades. Mas a situação pandémica também mostrou que só uma cultura cívica desenvolvida está em condições de assegurar os quadros de responsabilidade coletiva que permitam uma resposta eficaz. E sem um regime aberto e democrático, essa cultura não tem viabilidade.
Por fim, a pandemia expôs a emergência de uma mega-crise. Ela surgiu na sequência e em sobreposição a duas outras crises: a crise financeira e a crise ambiental global das alterações climáticas e da biodiversidade. Tornaram-se nítidas as consequências sanitárias da intervenção desregrada e excessiva na Natureza, bem como a pressão sobre os recursos naturais que se está a exercer de forma insustentável. O vírus é, aliás, uma das inúmeras formas pelas quais os desequilíbrios que criámos se nos tornaram e tornarão cada vez mais fatais a nós próprios.
O polígono constituído por estas 3 crises – financeira, ambiental e pandémica – une-as numa crise só, que é uma crise de reconhecimento da Humanidade do ser humano e da responsabilidade que nos envolve a todos perante todos, e a da nossa absoluta inerência ao planeta onde vivemos e que temos de cuidar.
O futuro exige que pensemos esta crise múltipla conjuntamente, tal como o tem feito a ONU com a Agenda 2030 ou a União Europeia com o Green Deal. Mas talvez a sua expressão mais integrada, incisiva e sobretudo consequente esteja nas duas encíclicas do Papa Francisco. A Laudato Si’, anterior à pandemia, e a recente Fratelli Tutti que, em larga medida, a prolonga e especifica, em plena fase aguda das três crises, e no momento em que todos tiveram de pensar no Fim, na Esperança e no Sentido.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.