Paixão de Francisco (II)

Deus não nos deixou entregues à vertigem das fatalidades e dos medos. Deu-nos Francisco e fez dele “Cireneu” do mundo e âncora da barca da Igreja.

  1. O mundo na barca de Pedro

“Temos uma âncora: na sua cruz, fomos salvos. Temos um leme: na sua cruz, fomos resgatados. Temos uma esperança: na sua cruz, fomos curados e abraçados, para que nada nem ninguém nos separe do seu amor”. (Bênção extraordinária Urbi et Orbi – tempo de pandemia – Praça de S. Pedro, 27.3.2020).

Há cinco anos, no dia 27 de março, o mundo viveu um momento único, belo e terrível, quando, na praça de S. Pedro completamente vazia, o Papa Francisco, sozinho e impotente, abraçando as dores do mundo, beijou os pés do Crucificado. Aquele beijo confirmou-nos que Deus não está fora das adversidades humanas.

A pandemia tinha-nos fechado em casa e, talvez por isso, naquele fim de tarde frio e chuvoso, foram os santos da colunata de Bernini, na tradição romana das estátuas que falam, que, assumindo a rendição ensurdecedora do nosso silêncio, disseram o que de mais jubiloso se pode anunciar naquele lugar: “Habemus Papam”. Sim. “Temos Papa”!

– “Temos Papa” quando a pandemia nos meteu no mesmo barco e o mundo encontrou em Francisco um timoneiro, certo que ninguém se salvaria sozinho.
– “Temos Papa” quando Francisco impôs na Igreja a política da “tolerância O” em relação a todos os abusos e abusadores.
-“Temos Papa” quando, distinguindo pastoralmente as situações, Francisco abriu a possibilidade dos sacramentos aos matrimónios canonicamente irregulares, depois de um discernimento acompanhado.
– “Temos Papa” quando, num mundo ferido de injustiças e em guerras injustificáveis, o Papa não tem medo de se opor ao negócio das armas e de ser uma voz temida pelos negócios imperialistas.
– “Temos Papa” quando, ainda que de forma tímida mas corajosa, o Papa começou a dar às mulheres lugares de liderança e de corresponsabilidade eclesial.
– “Temos Papa” quando vemos Francisco a beijar os pés dos líderes do Sudão ou a lavar os pés a doze mulheres, na Quinta-feira santa, numa das prisões de Roma.
– “Temos Papa” quando vemos Francisco submerso, em profunda oração, diante dos horrores de Auschwitz.
– “Temos Papa” quando, diante da sofisticação das novas tecnologias e da inteligência artificial, Francisco não deixa de nos indicar o caminho do coração.
– “Temos Papa” quando vemos Francisco a promover o diálogo entre gerações, culturas e religiões, a tirar os idosos do pântano do esquecimento, a incentivar a vida em família e o respeito pela vida, a estimular os jovens a serem audazes e santos, a promover uma nova cultura de formação dos sacerdotes, a telefonar para os cristãos da faixa de Gaza, a defender a liberdade de opinião, de imprensa e de educação, a sentar na mesma mesa os que nada podem e os que tudo têm. E quantas outras coisas não poderia cada um de nós acrescentar?

Sim. “Habemus Papam”. Deus não nos deixou entregues à vertigem das fatalidades e dos medos. Deu-nos Francisco e fez dele “Cireneu” do mundo e âncora da barca da Igreja.

O magistério espiritual do Papa Francisco é um magistério da realidade, que inclui também as coisas “profanas“, como a ecologia, a política, a economia, os avanços tecnológicos e científicos, tudo o que pode ameaçar ou salvar a cultura da vida. Ninguém pode negar a transcendência do seu ministério, que por graça e “feitio” alarga as portas dos espaços sagrados e devocionais e coloca Deus no centro das questões do mundo.

Nós temos Papa. Que Francisco saiba e sinta que tem Igreja. Que as pedras de S. Pedro, se puderem, lhe gritem com a mesma alegria: “Annuntio vobis gaudium magum”. Habemus Ecclesiam.

2. Deus bate à porta pelo lado de dentro

“Olhemos a Igreja como faz o Espírito, não como faz o mundo. O mundo vê-nos de direita e de esquerda…; o Espírito vê-nos do Pai e de Jesus. O mundo vê conservadores e progressistas; o Espírito vê filhos de Deus. O olhar do mundo vê estruturas…; o olhar espiritual vê irmãos e irmãs implorando misericórdia. O Espírito ama-nos e conhece o lugar de cada um no todo: para Ele não somos papelinhos coloridos levados pelo vento, mas ladrilhos insubstituíveis do seu mosaico” (Missa de Pentecostes, Basílica S. Pedro, 31.05.2020).

À medida que Francisco foi mostrando que sabia ao que vinha e como queria cumprir a missão petrina, consciente da força das suas palavras e da surpresa dos seus gestos, das expectativas que o seu magistério suscitava, do ímpeto renovador com que queria encher a Tradição e o Direito da Igreja, os chavões para etiquetar o Papa Francisco esgotaram-se rapidamente e tornaram-se insuficientes.

Francisco parece-me ser essencialmente um “carismático institucional”, que leva Deus ao mundo e o mundo a Deus. A sua alegria é estrutural e missionária. O seu estilo pessoal e modo de proceder são fruto de uma disciplina interior “olímpica”, própria de quem encontrou nos Exercícios Espirituais de S. Inácio um caminho afetivamente ordenado, um “método de vida” para encontrar a vontade de Deus, o que lhe permite ser um papa “inteiro”, diante das vicissitudes do nosso tempo.

Francisco não precisa da radicalidade dos extremos para vencer inseguranças, ter autoridade e viver o rigor e a exigência dos princípios. O mérito de Francisco não está na agressão, mas na radicalidade da mansidão.

Francisco não precisa da radicalidade dos extremos para vencer inseguranças, ter autoridade e viver o rigor e a exigência dos princípios. O mérito de Francisco não está na agressão, mas na radicalidade da mansidão, na prática de uma ascese mística, em fazer pontes entre as “pontas”, em distinguir, não em separar, em unir, não em dividir: unir o amor a Deus e ao próximo, a razão e a sensibilidade, a ciência e a contemplação, a santidade e a realização pessoal; unir pobres e ricos, novos e velhos, unir povos, culturas e religiões no “património” que a todos é comum. Unir não é diluir a verdade, por medo ou simpatia, apenas num consenso.

A história já nos mostrou que os que ameaçam com cismas, antes de ferir a união entre Cristo e a Igreja, atestam contra si próprios. De igual modo, aqueles que numa lógica inversa “vendem” a alma para ter um lugar na liturgia das vaidades, mundanizam o espírito e corrompem, tal como os cismáticos, a unidade de Cristo e a beleza da Igreja.

Francamente, creio que o Papa dispensa a soberba dos pseudo “catequistas”, que se autoconvenceram que são os arautos da verdade, que lhe querem “ensinar o Pai Nosso” e agem como “fiscais” divinos da ortodoxia. Outra coisa é que haja na Igreja fóruns e debates, eclesialmente diversificados, que ajudem a criar uma consciência crítica saudável, para fazer o contraponto de tudo o que não é dogmático e, caso existisse algum dissenso, salvaguardar intacto o sentido de pertença e a comunhão plena com o Papa. Não há outra forma de estar “dentro” da Igreja. Quem comunga Cristo, comunga a Igreja. Quem comunga a Igreja não pode estar fora da comunhão com o Papa, seja ele quem for e como for.

A este propósito, são tocantes as palavras e os gestos de confiança entre Bento XVI e Francisco. Quando Francisco, poucos dias depois da sua eleição, foi visitar Bento XVI, este entregou-lhe uma “caixa branca”, dizendo: “Está tudo aqui dentro, as atas com as situações mais difíceis e dolorosas, os abusos, os casos de corrupção, os episódios obscuros, os erros. Eu cheguei até aqui, tomei estas providencias, afastei estas pessoas, agora cabe-te a ti!”. Francisco testemunha: “Bento XVI foi para mim um pai e um irmão …; ajudou-me, aconselhou-me, apoiou-me e defendeu-me até ao fim’’ (cf. Autobiografia de Francisco – A Esperança, pág. 247-250).

Francisco sabe que “o olhar bendizente e acolhedor de Jesus impede-nos de cair nalgumas tentações perigosas: ser uma Igreja rígida, uma alfândega, que se arma contra o mundo e olha para trás; ser uma Igreja tépida, que se rende às modas do mundo; ser uma Igreja cansada, fechada em si mesma” (cf. Homilia da Missa de Abertura do Sínodo dos Bispos, 4.10.2023).

Deus, quando nos visita, “bate à porta, mas do lado de dentro da Igreja, para deixarmos o Senhor sair com a Igreja a fim de proclamar o seu Evangelho” (cf. Homilia da Missa de Abertura do sínodo dos Bispos, 4.10.2023)

3. Um pastor que “cheira” a Evangelho

“Dar a outra face não significa sofrer em silêncio, ceder à injustiça. Jesus, com a sua pergunta, denuncia o que é injusto, a mansidão de Jesus é uma resposta mais forte do que a bofetada que recebeu. Isso é dar a outra face”. (Ângelus, 20.2.2022)

Apesar de ter sido um cardeal mais dos bairros do que dos palácios episcopais, Bergoglio, quando foi eleito Papa, já sabia falar “vaticanez”. A experiência no conclave que elegeu Bento XVI ajudou-o a conhecer as subtilezas de Deus, mas também as do “mau espírito”, que não desiste de tentar corromper a santidade da Igreja. A determinada altura, Bergoglio percebeu que alguns que usavam o seu nome faziam-no para impedir a eleição de Bento XVI, não querendo eleger nem um nem outro. Só que, para Bergoglio, Ratzinger era a pessoa mais capaz para conduzir a barca de Pedro, na situação da Igreja post João Paulo II.  A verdade é que, tudo indica, Bergoglio ajudou a virar o conclave a favor de Bento XVI (cf. O sucessor, livro entrevista de Javier Martinez Brocal, Planeta, 2024).

Em abono da verdade, importa recordar que sempre existiram na Igreja opiniões e perspetivas diversas sobre a missão do Bispo de Roma e isso, por si só, não é um problema. Inclusive, para não tirarmos conclusões precipitadas, importa referir que o Papa não é o único justo que vive no Vaticano e que todos os outros que lá vivem ou trabalham são uma turba de invejosos e maledicentes.

Francisco revelou-se um Papa integrador e paciente. O seu pontificado não foi “ver, chegar e vencer” mas “em tudo, amar e servir a Deus”. O Papa Francisco não é um “tradicionalista” ou um “aventureiro”. Não é um saudosista ou um rubricista. É um “conservador” aberto à contemporaneidade, permeável aos gritos do nosso tempo. À imagem de Maria de Nazaré, Francisco é um crente cheio de perguntas. É Papa, não das suas certezas, mas das certezas de Deus.

Francisco conhece a história, mas arrisca novos caminhos e ensaia futuros. É um homem com uma profunda imersão no mistério de Deus. Umas vezes parece que se adianta aos tempos e aos modos, outras vezes ou não avança ou avança demasiado devagar. Uma coisa é certa: Francisco “mexe” com a Igreja. Não se deixa manipular nem intimidar, é muito espontâneo sem deixar de ser programado, é de uma transparência exemplar.  Se tiver que esperar, mais do que desejaria, para conduzir a Igreja ao bom porto, embora sofra, porque adiar medidas de misericórdia tem efeitos concretos em tantos cristãos feridos, Francisco, não deixando de ser claro, não se impõe.

Em 2013, ano da sua eleição, o Papa Francisco foi eleito pela revista Time “pessoa do ano”. Nancy Gibbs, diretora da revista nesse ano, sintetizou as razões desta escolha: “Em nove meses, ele soube colocar-se no centro das discussões da nossa época: a riqueza e a pobreza, a equidade e a justiça, a transparência, a modernidade, a globalização, o papel da mulher, a natureza do casamento, as tentações do poder”.

A preferência evangélica de Francisco pelos mais pobres, refugiados, sem abrigo, presos, etc., não exclui ninguém da sua vida. Para além dos amigos óbvios (da sua própria família, dos mais diversos âmbitos da Igreja, e do seu próprio país), Francisco relaciona-se com pessoas de todos os setores da sociedade civil e toca o coração de cada um. Francisco é muito querido pelas crianças, pelos jovens, pelas famílias, pelos anciãos, por crentes e não crentes.

Francisco partilha com os mais jovens as causas contemporâneas da paz, da ecologia, do respeito pelos direitos humanos, da identidade afetiva, do cuidado com a casa comum, da cultura digital, da promoção das mulheres, ao mesmo tempo que defende a vida, o matrimónio, que combate o aborto e a eutanásia, a cultura do descarte e da guerra, que denuncia a economia que mata, as dependências e adições que exploram, a violência contra as mulheres, o controle da inteligência artificial, a falta de ética na comunicação, etc.

Aberto a todos, o coração de Francisco é profundamente católico nas suas relações. Para a Igreja, Francisco “é luz e sal”, para o mundo, esperança e abertura.  Por isso,  para todos, a sua vida e missão “cheiram” a Evangelho.

4. Linhas mestras de um Pontificado inacabado

“Não esqueçamos jamais que o verdadeiro poder é o serviço, e que o próprio Papa, para exercer o poder, deve entrar sempre mais naquele serviço que tem o seu vértice luminoso na Cruz” (Homilia da missa do Inicio de ministério petrino do Bispo de Roma, 19.03.2013)

Francisco não foi eleito por acaso. Foi escolhido por ser quem era e como era. Quem o elegeu conhecia a sua forma de viver, de pensar e de governar, conhecia o seu modelo de Igreja evangelizadora, que sai de si mesma e vai para as periferias geográficas e existenciais.

Francisco, assumiu “o caderno de encargos” que o Conclave lhe entregou para agilizar, “converter” e desempoeirar as estruturas da Igreja, suscitando um verdadeiro advento eclesial. Tornando-a mais inserida na realidade e ao serviço dos mais frágeis, Francisco exerce o seu ministério petrino como um reformador “esperançado”, à imagem de S. Inácio de Loyola e de S. Teresa de Ávila, que não desistiram da Igreja nem deixaram a outros o trabalho heroico da sua renovação. A sua reforma é uma reforma de amor, não é contra ninguém, não é uma ”reforma” de secretaria, mas uma renovação das mentalidades e das atitudes, uma conversão “ad intra”, própria da fé.

De forma inaciana, Francisco “ama a Igreja como mãe” e por isso não a quer “domesticada” e propriedade apenas de alguns filhos, mas quer ajudar a reerguer uma Igreja viva, serva e “património” de toda a humanidade. Francisco atravessa-se, escuta o Espírito Santo que o sustenta e lhe garante que “a tradição não é um museu, a verdadeira religião não é um congelador e a doutrina não é estática, mas cresce e desenvolve-se como uma árvore que permanece a mesma, mas cresce e produz sempre mais fruto” (cf.  Sonhemos juntos, O caminho para um futuro melhor – Conversa com Austen Ivereigh, Planeta).

De forma inaciana, Francisco “ama a Igreja como mãe” e por isso não a quer “domesticada” e propriedade apenas de alguns filhos, mas quer ajudar a reerguer uma Igreja viva, serva e “património” de toda a humanidade.

Para Francisco “não há contradição entre estar enraizado na verdade e ao mesmo tempo estar aberto a uma maior compreensão”, por isso, o Papa gosta de citar Gustav Mahler, quando afirma: “A tradição não é o depósito de cinzas, mas a preservação do fogo” (cf. Sonhemos juntos. O caminho para um futuro melhor –  Conversa com Austen Ivereigh, Planeta, pág. 65).

Entre tantas dimensões luminosas do seu Pontificado, permitam-me que destaque apenas algumas, deixando, em cada uma, breves considerações de quem acredita que o Papa Francisco nos ajuda a viver tempos difíceis, mas bem-aventurados.

4.1. Uma Igreja que não tem medo de se converter

“Somos chamados a lançar de novo as redes e a abraçar o mundo com a esperança do Evangelho. Não é momento de parar, não é momento de desistir, não é momento de atracar o barco à margem nem de olhar para trás; não temos que escapar deste tempo, só porque nos mete medo, para nos refugiarmos em formas e estilos do passado” (Vésperas e homilia no Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa JMJ, 2.9.2023).

Em 1205, S. Francisco de Assis teve uma visão diante do crucifixo na capelinha de São Damião, que lhe dizia: “Vai Francisco e reconstrói a minha Igreja em ruínas”. Francisco restaurou a pequena Porciúncula e só mais tarde se apercebeu que a Igreja em ruínas não era a pequena capela mas a Igreja universal, que vivia sufocada no luxo e na riqueza. Sabemos a razão pela qual o cardeal Bergoglio, eleito Papa, escolheu  o nome de Francisco. Foi a primeira vez na história da Igreja. O nome “Francisco” é, em si mesmo, um programa de vida, um paradigma de uma Igreja “despoluída” das glórias do mundo.

Para Francisco, a interpelação que o Senhor nos faz para renovarmos a Igreja é esta: “Queres descer do barco e afundar na desilusão, ou fazer-Me subir permitindo que seja mais uma vez a novidade da minha Palavra a tomar na mão o leme? … Queres apenas conservar o passado que ficou para trás ou lançar de novo e com entusiasmo as redes para a pesca? … Eis o que nos pede o Senhor: despertar a ânsia pelo Evangelho” (Vésperas e homilia no Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa JMJ, 2.9.2023).

Por quantos restauros já não passou o edifício que é a Igreja? Francisco, enquanto “reparador de brechas” e apóstolo da “espiritualidade dos recomeços” sabe que a Igreja está sempre a fazer-se e a desfazer-se, sempre a recomeçar, a renascer das cinzas, que, por mais pecadora que seja, nunca deixa de ser santa, que é plena sem ser perfeita, que é um outro corpo inacabado de Cristo, que não se pode destruir nas ruínas do desanimo e pessimismo.

No magistério de Francisco, em particular nas suas encíclicas e exortações apostólicas, encontramos a “maquete” da Igreja sonhada por Francisco, a partir de Deus e lendo os sinais dos tempos.

Traves mestras deste “edifício” são a Evangelium Gaudium, que traça as linhas para uma pastoral missionária, a Laudato Si e Laudato Deum, que defendem a urgência de uma conversão ecológica global e a redescoberta da beleza da criação e do criador, a fascinante Fratelli Tutti, que nos desinstala e convoca a uma corresponsabilidade humana capaz de construir uma sociedade mais fraterna e solidária, uma forma de vida com sabor a Evangelho, sensíveis ao destino de todas as pessoas.

Dentro desta nova casa abrem-se largas janelas por onde entram novas luminosidades e esperanças, em particular através da Amoris Laetitia, que pretende responder à complexidade amorosa com que as famílias hoje se debatem, a Querida Amazónia, que abre um debate arriscado e não acabado sobre a presença da Igreja em contextos periféricos e, finalmente, a sua última encíclica Dilexit nos, um texto maravilhoso, profundamente espiritual, que nos conduz até ao coração de Cristo, onde o amor é mais que perfeito. Como não recordar ainda as exortações apostólicas C’est la confiance, sobre o amor misericordioso que santa Teresinha viveu, a Christus vivit, fruto do sínodo sobre a Juventude, a fé e o discernimento e a Gaudete et exsultate, que chama todos os batizados à santidade de Deus.

4.2. Quando a alegria é a “marca” dos cristãos

“O Evangelho, onde resplandece a Cruz de Cristo, convida insistentemente à alegria”  (Evangelii  Gaudium, 5)

A alegria do Evangelho é um dos eixos que configura  o perfil e o pontificado do Papa Francisco.

A Igreja que o Papa Francisco deseja construir, e da qual  ele mesmo é primeira testemunha, é uma Igreja de rosto lavado, genuinamente alegre, cheia de misericórdia, despida de vanglórias, atenta aos problemas reais da humanidade, em diálogo critico e audaz com o mundo atual, aberta às outras Igrejas cristãs e em diálogo com as outras religiões. Uma Igreja feliz, que se faz ao largo e entra pelo mar adentro, sem medos nem arrogâncias. Uma Igreja à imagem de Jesus e não condicionada por nada nem por ninguém, e ainda menos por si mesma.

A Igreja mandatada pelo Senhor para “anunciar por todo o mundo” é chamada a viver alegremente “em saída”, procurando alcançar pessoas e lugares onde o Evangelho morreu precocemente ou ainda não chegou. Para sair de si mesma e “encher-se de graça”, a Igreja precisa de se converter ao espírito missionário de Cristo e afastar-se de tudo aquilo que a pode confundir com qualquer sociedade comercial. A Igreja não tem nada para vender. Não vende missas, sacramentos, bênçãos ou peregrinações. Tudo o que a igreja tem, em última análise, não lhe pertence, é para ser dado. Por isso, os pobres são o seu tesouro, a custódia onde Deus se revela, despojado e gratuito.

O Concilio Vaticano II alargou a ideia de conversão, dizendo que toda a Igreja, e não só cada batizado, é chamada a um processo de conversão das suas estruturas, a uma reforma permanente de si mesma. Não há outra forma de ser fiel a Cristo. A prova da conversão está na alegria com que somos chamados a viver e a anunciar o Evangelho. De facto, uma Igreja em saída não tem viabilidade se não for humilde a propôr o Evangelho, a acolher e acompanhar cada um, a suscitar uma alegria renovada, própria de quem encontrou o Crucificado. O que não podemos é viver nenhuma dificuldade, nenhuma quaresma sem a alegria da Páscoa. Porque a alegria não é o que vem depois da dor, mas o amor que está dentro da dor.

Diz Francisco: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem num canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à auto-preservação” (cf. Evangelii Gaudium, 27).

A firmeza das verdades da fé, a tradição viva e histórica, a racionalidade e inteligência teológica, a institucionalidade das suas estruturas, os seus princípios éticos irrevogáveis, a santidade das suas liturgias, em nada contradizem uma Igreja em saída, pelo contrário, sustentam a verdadeira alegria que atravessa a vida missionária de Jesus e configura como bem aventurada a vida dos seus discípulos, em todos os tempos.

A alegria do Evangelho dá ao Papa Francisco e à Igreja uma serenidade perene própria de quem sabe que “a Igreja santa é sempre necessitada de purificação” (cf. Vat. II, Lumen Gentium, 8). Como sabemos, o Papa Francisco vê a Igreja “como um hospital de campanha depois de uma batalha” chamada a cuidar das feridas das pessoas, a aliviá-las com o óleo da consolação e a enfaixá-las com a misericórdia (cf. Misericordiae Vultus, n.15), capaz de “suscitar alegria, porque o coração se abre à esperança de uma vida nova” (cf. Misericordiae Vultus, n. 3).

4.3. Quando a Misericórdia tem o nome de Deus

“Tudo isto vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação” (2 Cor 5, 18).

O perdão cura tudo e todos. A misericórdia de Deus faz de cada um de nós um “cuidador” dos outros. Os  que vivem e oferecem a misericórdia recuperam laços perdidos, curam ressentimentos e feridas, ressuscitam histórias, pacificam mágoas e suspeitas, como confirma o Papa Francisco quando afirma: “Ter um coração misericordioso não significa ter um coração débil. Quem deseja ser misericordioso necessita de um coração forte, firme, fechado ao tentador, mas aberto a Deus” (cf. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma 2015).

Ao perdoar, Jesus não foi um fraco, mas um “crente” praticante da fortaleza de Deus, que por razão nenhuma guarda ressentimento ou vive numa lógica de vingança. O perdão não “repara“ apenas o dano, mas restaura a vida dos que desumanizaram o seu coração, perdedores e vencedores, convencidos que a vitória da razão lhes concedia o poder de deixar ficar para trás os feridos, vítimas da sua própria cegueira e ganância.

O Senhor não exclui ninguém do seu perdão. Como celebramos no memorial da Sua paixão, Jesus ofereceu a sua vida por todos, a todos entregou o seu corpo e sangue para a remissão dos nossos pecados. As palavras do Senhor “fazei isto em memória de mim” interpelam-nos a celebrar e a anunciar: a celebrar a sua presença na eucaristia e a anunciar o evangelho da sua misericórdia, curando cada um, perdoando os outros como somos perdoados, em sua memória, à sua maneira, como ele nos pediu e ensinou.

Os gestos de bondade do Papa Francisco, em particular com os mais frágeis, são sempre gestos espirituais, sinais evangélicos da grandeza de Deus que no perdão concretiza o seu amor por nós. Francisco insiste “Deus não se cansa de perdoar, nós é que nos cansamos de pedir-lhe perdão” (cf. 1º Ângelus do Papa Francisco,17.3.2013). “Deus não exclui ninguém do seu amor”, como se afirma no livro O nome de Deus é misericórdia, Jubileu Extraordinário da Misericórdia de 2016.

O mote de vida que nos revela quem é e como se entende a si mesmo o Papa Francisco está gravado no seu brasão episcopal: “miserando atque eligendo vidit”. O lema foi tirado das Homilias de São Beda, o qual, comentando o episódio evangélico da vocação de São Mateus, escreve: “Viu Jesus um publicano, olhou para ele com sentimento de amor e escolheu-o, disse-lhe: Segue-me”.

Poderia o Papa Francisco atuar de outra maneira, se a sua própria vocação, à semelhança de Mateus, é um chamamento de Deus à Sua misericórdia? Poderia o Papa Francisco ocultar a misericórdia de Deus ao seu povo, se não há maior “transfiguração” na vida da Igreja do que passarmos de pecadores a pecadores perdoados e de pecadores perdoados a perdoadores? Todo este movimento se confirma quando diz “A misericórdia é esta ação concreta do amor que, perdoando, transforma e muda a vida… Deus é misericordioso (Ex 34, 6), a sua misericórdia é eterna (Sal 136/135)” (cf. Carta Apostólica Misericordia et misera, nº 2, 2016).

4.4. Quando a sinodalidade cheira a Pentecostes

“O Sínodo é um caminho segundo o Espírito: não um parlamento para reclamar direitos e exigências à maneira das agendas do mundo, nem ocasião de se deixar levar ao sabor de qualquer vento. O Sínodo é uma oportunidade para ser dóceis ao sopro do Espírito. O coração da sinodalidade é o próprio Espírito Santo” (Homilia, Missa de Pentecostes, 2023).

O “milagre” mais desejado por Francisco começou a acontecer no sínodo sobre a Sinodalidade. Muitos obstáculos foram vencidos e as resistências foram-se dissipando à medida que o caminho sinodal se foi fazendo de forma rezada e transparente. No sínodo sobre a Sinodalidade a Igreja viveu um momento profundo de renovação espiritual e de reforma estrutural.

Ainda só estamos no princípio do “milagre”, mas a consistência dos pequenos passos que o sínodo deu garantem-nos que a Igreja está a preparar o seu futuro com audácia e esperança.

Ainda só estamos no princípio do “milagre”, mas a consistência dos pequenos passos que o sínodo deu garantem-nos que a Igreja está a preparar o seu futuro com audácia e esperança.

Na nova composição do sínodo, nem o Papa, Bispos e Cardeais, nem os leigos ou as mulheres, que pela primeira vez na história tiveram direito a voto, foram os protagonistas. O protagonista principal do sínodo foi mesmo o Espírito Santo.

O Espírito Santo é o maior apoiante da renovação da  Igreja. O Espírito Santo não tem os nossos temores, alegra-se quando nos vê a arregaçar as mangas e a reconstruir a face da Igreja. O Espírito Santo é o maior aliado da Sinodalidade da Igreja e de todos os seus riscos. A Sinodalidade é o processo onde a presença do Espírito Santo é inegociável e a sua opinião é decisiva. Pela força do Espírito, a Igreja assumiu-se sinodal e a Sinodalidade revelou-se interminável. O sínodo assumiu a Sinodalidade como um eixo prioritário da vida eclesial, um modo de estar e de proceder da Igreja que quer profeticamente servir a humanidade.

Ao percorrer o caminho sinodal, estamos a sonhar com uma Igreja que ainda não existe, que tem que se renovar para saber estar no mundo, sem ser do mundo, nem contra o mundo.  A sinodalidade não é um fim em si mesmo, não é uma teoria, é um processo prático e vivencial que concretiza o encontro e a fraternidade, a corresponsabilidade, a escuta recíproca entre os batizados, na diversidade das suas histórias e vocações, para tornar a igreja mais católica, participativa e missionária. No coração da sinodalidade encontramos os fundamentos teológicos, espirituais e proféticos que sustentam a proximidade e a conversão das relações que possibilitam o conhecimento e colaboração entre a diversidade das vocações, a originalidade dos carismas e a especificidade de ministérios.

O Papa quer que o sínodo ajude à renovação, não à divisão. O problema é que muitos na Igreja têm esperanças contraditórias. E quando parecia que seria impossível reunir a sensibilidade dos opostos numa mesa comum, surge da memória a experiência que une todas as diferenças, a ceia pascal de Jesus, íman agregador dos apóstolos, feridos pelo drama de terem abandonado Jesus no martírio da sua cruz. A memória de Jesus e da Ceia pascal que celebraram é muito mais forte do que a vergonha de se reencontrarem e assumirem as suas fragilidades.

A Sinodalidade é profundamente fraternal e eucarística porque congrega todos os cristãos à volta de mesmo pão, dentro da mesma Igreja. Além de Cristo, os membros sinodais comungaram diferenças e divergências, comungaram a Igreja toda, feita com as “migalhas“ preciosas de todos,  com razões, interpretações e sensibilidades diferentes, mas todos sentados na mesma mesa, “juntos no mesmo barco” e movidos pelos mesmos ventos do Pentecostes que põe a Igreja a mexer. A vontade de se conhecerem e o gosto de se escutarem venceu. O sínodo mostrou-nos como não há nenhum problema irresolúvel se formos divergentes nas ideias quando estamos unidos na eucaristia e na caridade formamos um só corpo de irmãos de Cristo. Não viveremos de suspeitas, intrigas, ressentimentos, rivalidades e maledicências. Como tão bem disse Timothy Radclyffe na terceira conferência do retiro que pregou aos membros sinodais: “A ortodoxia é ampla e a heresia estreita”. A discordância aberta nunca foi um problema.

A sinodalidade não é nem pode ser uma moda. É o antídoto para combater as formas de poder e de riqueza que se instalaram na Igreja, as rivalidades e ciúmes que dividem os cristãos e ferem a mútua confiança entre dioceses, paróquias, ordens religiosas e movimentos laicais. A Sinodalidade vira a Igreja para fora de si mesma, descentra-a das suas defesas e egoísmos e centra-a no mistério da cruz do Senhor.

O sínodo realizado na prova da confiança trouxe-nos duas novidades excelentes: 1ª) O facto de o documento final se ter tornado magistério eclesial ao ser assumido pelo Papa “mostra a coerência do Papa que deu a palavra ao povo de Deus e deixou que o texto elaborado por esse mesmo povo de Deus se converta em magistério eclesial”. 2ª) os temas mais polémicos, menos votados, embora muito votados, que ficaram lançados, terão o seu próprio tempo de gestação: o papel das mulheres na igreja, a questão das lideranças e a formação sinodal dos presbíteros, não foram esquecidos nem engavetados, mas continuarão muito presentes na oração e na reflexão dos diversos grupos encarregues de prosseguir e consolidar sem medo esta reflexão. Para que este trabalho não fique pelo caminho, o Papa Francisco marcou uma Assembleia Sinodal para 2028. Expectante do fruto deste trabalho está certamente o próprio Espírito Santo.

“Se é de um milagre que precisamos, estamos no caminho certo” e se estamos a sonhar um modo novo de ser Igreja, se estamos a voltar ao centro daquilo que é a Igreja – um povo de batizados que caminha na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo – então precisamos de sonhar com alegria um modo novo de ser Presbítero, Diácono, Cristão Leigo, Leiga, Religioso, Religiosa e até de ser Bispo e Papa.

A sinodalidade não diminui a autoridade, nem do Papa nem dos Bispos. O Sínodo foi muito exigente porque deixou cada um sem a capacidade de ter tudo controlado. Quem procurava compreender teve que questionar as velhas certezas. Não há maior liberdade do que a de se deixar guiar pelo Espírito. Como é difícil a conversão da cultura do domínio e do controlo.

Nota final

Francisco diz-nos na encíclica Dilexit Nos que “no coração de Cristo encontramos todo o Evangelho” (cf. Dilexit Nos, 89).  De facto, a Igreja não tem outro Evangelho senão Cristo, onde mora toda a nossa esperança. A igreja tem a sua “garantia”, como sempre,  no coração de Cristo, onde encontramos as razões que podem “iluminar o caminho da renovação eclesial” que o Papa Francisco assumiu com liberdade e determinação.

A alegria incondicional do Evangelho, o desejo de conversão da própria Igreja, a experiência da absoluta misericórdia e a esperança do processo sinodal em curso ajudarão a Igreja a encontrar o rumo da sua autenticidade, assim como contribuirão para que, de um modo humilde, a Igreja ajude o mundo a reencontrar onde está o tesouro do  seu coração.

Em absoluto, o futuro da Igreja está nas mãos de Deus. A Igreja não está perdida no meio do mar, nem o Papa desorientado sem saber governar os ventos que a atormentam. O Papa Francisco, servo de Deus e da Igreja, continuará a escutar e a discernir como e quando pode realizar, em si mesmo e em todo o povo de Deus, a fidelidade de Deus “que nos amou primeiro” (cf. 1 Jo. 4,10), âncora de todas as nossas esperanças.

No entanto, o ideal será não deixarmos o Papa sozinho a fazer esta viagem. Também eu, cada um de nós, pode pôr-se a caminho e diante do Senhor Crucificado perguntar-me: Que posso eu fazer pela Igreja?  Que posso eu fazer pelo mundo? Esperam-nos, na fé, tempos fascinantes para viver.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.