Ouvir com o coração o grito da Terra

É possível cuidar e fazer uma grande diferença na vida da Terra com pequenos gestos, como uma gota de água no oceano, mas assumidos com determinação e compromisso.

Neste mês de Setembro, que coincide praticamente com o Tempo da Criação, o Papa Francisco pede-nos que «rezemos para que cada um de nós ouça com o coração o grito da Terra e das vítimas das catástrofes ambientais e das alterações climáticas, comprometendo-nos pessoalmente a cuidar do mundo que habitamos».

A partir deste pedido, proponho que reflictamos sobre algumas das suas palavras.

O Papa refere-se à Terra com uma personificação, atribuindo-lhe uma voz que grita. Esta personificação não é uma inovação do Papa Francisco, pois muitas culturas antigas e também do presente referem-se à Terra como mãe, reconhecendo que vimos à vida no seio da Terra e que, de alguma forma, dependemos dela para viver. Isso parece ser mais comum em sociedades tecnologicamente menos desenvolvidas, onde as pessoas têm maior contacto com a terra. Esta imagem da Terra como mãe é poderosa, pois transmite a ideia de um vínculo forte, muitas vezes associado a uma relação de dependência. Na encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco também se refere à Terra como mãe.

No entanto, muitas vezes parecemos alheios ao grito da Terra, como se nos tivéssemos desvinculado dela, como se fosse uma estranha, e não a nossa mãe. Talvez a imagem da Terra como mãe tenha perdido força em sociedades predominantemente urbanas ou materialmente mais ricas, onde a maior parte das pessoas não tem uma relação próxima com a terra e também em que a família e, portanto, também a figura materna, não está tão presente no quotidiano dos filhos por razões laborais. Muitas vezes as crianças são confiadas durante uma considerável parte do dia a creches e escolas e, por isso, desde cedo são menos dependentes da mãe para as necessidades do dia a dia. O cuidado que era geralmente ­quase exclusivo da mãe é, em parte, prestado por pessoas competentes, mas com as quais normalmente não se estabelecem relações afectivas.

Uma outra personificação da Terra é chamá-la nossa irmã e esta talvez nos ofereça uma imagem mais cristã, pois Deus, o criador do Céu e da Terra, é também o nosso criador. A relação de dependência com a Terra-mãe dá lugar a uma relação de fraternidade, dado que a Terra e nós partilhamos a mesma origem, o mesmo Pai.

Uma outra personificação da Terra é chamá-la nossa irmã e esta talvez nos ofereça uma imagem mais cristã, pois Deus, o criador do Céu e da Terra, é também o nosso criador. A relação de dependência com a Terra-mãe dá lugar a uma relação de fraternidade, dado que a Terra e nós partilhamos a mesma origem, o mesmo Pai. A imagem da Terra-irmã não transmite a ideia de uma relação de dependência, mas também não sugere total independência e autonomia. Com os irmãos, temos geralmente uma relação de proximidade, por sermos filhos dos mesmos pais e por sermos geralmente criados sob o mesmo tecto.

São Francisco de Assis combina as duas imagens, enriquecendo a compreensão da nossa relação com a Terra: «Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras» (Cântico das Criaturas).

Logo nos primeiros capítulos da Bíblia, Deus chama Caim à responsabilidade, ao perguntar-lhe: «Onde está o teu irmão?» e acrescentando: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim» (Gn 4,9-10). No início da história da humanidade o sangue de Abel grita, e hoje é também a irmã Terra que grita. O grito da Terra associa-se ao grito das vítimas das catástrofes ambientais e das alterações climáticas e Deus pede-nos contas da sua saúde. Mesmo que não sejamos responsáveis directos pelo seu sofrimento, a Terra e as pessoas que nela habitam são nossas irmãs e o seu grito de sofrimento continua a chegar a Deus, pelo qual somos continuamente responsabilizados. Um entendimento cristão do cuidado da Terra nunca pode ser separado do cuidado pelos nossos irmãos e irmãs, e por isso a ecologia não pode, para nós, ser dissociada do trabalho social.

A quem ouve com o coração, o Papa convida a um compromisso pessoal. É diferente de um compromisso social, uma forma de compromisso despersonalizada porque confiamos na bondade e eficácia das nossas instituições, delegando nelas a responsabilidade de responder aos gritos sofredores, pensando, de consciência tranquila, que «alguém há-de tratar disso». O tipo de compromisso a que o Papa nos desafia afecta a nossa vida pessoal, pois exige de nós tempo, trabalho e outros recursos que poderíamos utilizar de outra forma, em nosso próprio proveito.

Por fim, o compromisso a que o Papa nos desafia é o de cuidar da nossa casa comum, ou seja, da Terra e de quem nela vive. Cuidar de forma séria só é possível com continuidade. Cuidar requer que estejamos atentos à urgência, para agir sem demora, e que sejamos pacientes quanto aos resultados que podem tardar muito. Uma boa ilustração da combinação entre urgência e paciência no agir é o conto «O homem que plantava árvores», de Jean Giono, cuja adaptação ganhou o Óscar de melhor curta-metragem de animação em 1988. Um pastor de ovelhas combina o seu trabalho principal de conduzir o seu rebanho com alguns pequenos gestos de recolher, escolher e enterrar sementes de árvores. Introduziu no seu dia a dia gestos de cuidado pela terra em que se encontrava.

É possível cuidar e fazer uma grande diferença na vida da Terra com pequenos gestos, como uma gota de água no oceano, mas assumidos com determinação e compromisso. Há inúmeras formas de nos comprometermos com o cuidado do mundo que habitamos.

O Papa Francisco lançou-nos um desafio. Como respondemos? Um primeiro passo pode ser informarmo-nos acerca do que outros já fazem, para depois nos comprometermos com algumas, poucas, coisas, pequenas e que nos sejam possíveis para cuidar da Terra e de todos os que nela habitam.

 

Nota: O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.