Óscar Romero, salvadorenho, foi canonizado no passado dia 14 de outubro. As obras e palavras que dele conhecemos testemunham um compromisso radical para com os seus próximos, em particular os mais desfavorecidos. Ainda assim, o seu percurso pode ser considerado algo surpreendente, passando de clérigo conservador e politicamente pouco ativo – ainda que reconhecidamente generoso e próximo dos pobres – a defensor incondicional dos direitos humanos, em especial dos mais vulneráveis e oprimidos, e denunciador radical dos que mais tinham e dominavam – tão radical que o conduziu à morte, sendo assassinado (no altar, enquanto celebrava Missa) exatamente no dia seguinte a ter proclamado na sua homilia, em plena catedral: “Em nome de Deus e do povo que sofre, suplico-vos, peço-vos, e em nome de Deus vos ordeno, cessem a perseguição contra o povo”.
Esta transformação e adesão a uma radicalidade antes desconhecida é frequentemente associada à morte do jesuíta salvadorenho Rutílio Grande, seu amigo, e de dois agricultores, assassinados numa emboscada a mando dos latifundiários a quem o jesuíta se opunha, encorajando os camponeses a organizarem-se e exigirem uma distribuição mais justa da terra. Tendo sido nomeado arcebispo de S. Salvador poucas semanas antes, Romero velou toda a noite diante dos seus corpos.
Após este episódio dramático, – a que, na época, se juntavam vários outros promovidos por esquadrões da morte que assassinavam as pessoas que se demonstravam contra o sistema vigente no país – Óscar Romero ganhou uma clarividência e uma convicção tremenda em relação à luta do seu povo: não bastava o apoio caritativo; os problemas dos mais pobres, vulneráveis e oprimidos do seu país só poderiam ter algum tipo de resolução se se averiguassem, denunciassem e transformassem as causas profundas dessa pobreza e injustiça. Palavras como “Uma verdadeira conversão cristã hoje deve revelar os mecanismos sociais que marginalizam os trabalhadores e camponeses” ou “O trabalhador não é uma mercadoria, sujeita aos altos e baixos da economia, mas uma pessoa humana que, pelo facto de ser tal, tem direito a um salário justo” passaram a ser proferidas amiúde e com crescente convicção. E não só os governantes, os mais ricos e demais opressores do seu país passaram a ser alvo das suas palavras. Também todas as pessoas que não se vestiam desta armadura de denúncia e luta por uma transformação radical (ou seja, atingindo a raiz dos problemas) tornavam-se desgraçadamente cúmplices do sistema baseado na injustiça e exploração que dominava o país.
Óscar Romero ganhou uma clarividência e uma convicção tremenda em relação à luta do seu povo: não bastava o apoio caritativo; os problemas dos mais pobres, vulneráveis e oprimidos do seu país só poderiam ter algum tipo de resolução se se averiguassem, denunciassem e transformassem as causas profundas dessa pobreza e injustiça
A canonização de Óscar Romero foi proclamada pelo Papa Francisco, argentino, de quem se diz que pôs muita energia e dedicação neste processo – o qual atravessou fases mais e menos luminosas pelas ligações feitas entre a pessoa de Óscar Romero e a Teologia da Libertação. Francisco tem demonstrado ser um Papa corajoso, que não se contenta com pouco nem com o “aparentemente (e comodamente) bom”; pelo contrário, tem posto na sua missão um declarado interesse e dedicação em procurar ir ao profundo, à raiz das questões, sejam elas de caráter espiritual, eclesial ou sociopolítico.
“A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar (…) Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.” Ilustro essa busca e essa opção com as suas palavras na Evangelii Gaudium (202) por me parecerem determinantemente incisivas e sem lugar para equívocos, mas poderia ilustrá-la com inúmeras outras declarações presentes noutras encíclicas e nos seus discursos.
Uma coisa parece inequívoca: Romero e Francisco unem-se através da sua opção preferencial pelos pobres e essa opção leva-os a (re)encontrarem-se nesta necessidade de questionar e denunciar a raiz dos problemas sociais e, como tal, de não ficarem calados em face daqueles que exploram e oprimem numa lógica sistémica e hegemónica.
Mas, então, o que tem tudo isto a ver com Educação para a Cidadania?
Para responder a esta pergunta, recorro a mais uma pessoa de origem latino-americana, Vanessa Andreotti, brasileira, uma ilustre desconhecida para a grande maioria dos mortais, mas uma referência naquilo a que designamos por Educação para a Cidadania Global.
Para além da sua profundidade de questionamento e pensamento, uma coisa que marca aquilo que escreve é a sua capacidade para sistematizar o essencial e apresentar-nos esse essencial de forma compreensível. Num destes seus exercícios, Vanessa Andreotti, a partir da sua investigação, distinguiu duas abordagens em relação à Educação para a Cidadania Global: a soft e a critical [1].
A abordagem soft aborda os problemas numa lógica de carência, justificando as desigualdades a partir das diferenças de capacidades (históricas, culturais, atuais). O foco está na responsabilidade pelo outro/a e no dever de se ser bom, numa visão uniformizadora da pessoa – todos queremos as mesmas coisas. Os motivos para agir são humanitários, com base em princípios normativos para o pensamento e para a ação. Sensibiliza-se para as questões globais, promovem-se campanhas, capacitam-se os indivíduos para a ação, partindo dessa visão uniformizadora do que é o bem-estar e o mundo ideal. Não é que seja necessariamente errada ou que não tenha lugar no processo educativo, mas é curta (e frequentemente tem impactos contrários aos desejados, conferindo, por exemplo, sentimentos de auto-importância, presunção, paternalismo e supremacia cultural)…
A abordagem ‘critical’ aborda os problemas numa lógica estrutural (complexa) e sistémica, justificando as desigualdades a partir do benefício e controlo dos sistemas e das estruturas injustas e violentas, bem como das relações de poder e atitudes que criam e reproduzem os sistemas de exploração e tendem a eliminar o que é diferente/divergente. O foco está na responsabilidade para com o outro/a e para aprender com esse outro, acolhendo e assumindo as diferenças entre as pessoas.
Por seu lado, a abordagem critical aborda os problemas numa lógica estrutural (complexa) e sistémica, justificando as desigualdades a partir do benefício e controlo dos sistemas e das estruturas injustas e violentas, bem como das relações de poder e atitudes que criam e reproduzem os sistemas de exploração e tendem a eliminar o que é diferente/divergente. O foco está na responsabilidade para com o outro/a e para aprender com esse outro, acolhendo e assumindo as diferenças entre as pessoas. Os motivos para agir são políticos/éticos, com base em princípios normativos para as relações. Capacitam-se os indivíduos para a reflexão crítica, para a autonomia, para o diálogo, para o acolhimento da diferença e para, a partir daí, imaginarem soluções futuras diferentes e assumirem responsabilidade sobre as suas decisões e ações, comprometendo-se ao nível do seu próprio contexto e também ao nível das questões globais.
Não é que esta abordagem critical seja necessariamente perfeita, mas apostaria que se Romero e Francisco fossem meus companheiros nesta tarefa e vocação de sermos educadores para a cidadania, optariam por ela.
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[1] http://www.sinergiased.org/index.php/revista/item/53-vanessa-andreotti-educacao-para-a-cidadania-global-soft-versus-critical.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.