Os empreendimentos do tráfico humano

No tráfico humano há todo o tipo de empreendimentos. Conhecê-los é extremamente importante, pois é nas lacunas do conhecimento que o traficante opera melhor.

A Safira era uma ingénua rapariga da região de Edo na Nigéria. Como tantas raparigas da sua idade (14 anos) sonhava com uma vida melhor, que a libertaria do ciclo de pobreza que grassava a sua família há gerações. Por isso quando um tio a abordou, com uma oportunidade de emprego na Europa, não hesitou. Ainda por cima essa oportunidade incluía uma passagem área. Irresistível demais. Com um sorriso do tamanho do mundo, embarcou rumo a Portugal. Sonhava acordada com as perspetivas de uma vida na hotelaria, no glamoroso ramo do turismo em próspero crescimento. Chegada a Portugal esperava-a um homem que a levou não para um hotel, mas para um apartamento escuro, frio, onde foi encarcerada durante meses. O calor do sol voltou a senti-lo quando foi levada para se prostituir numa estrada nos arredores de Lisboa.

A  Zulmira chegou a Portugal vinda do Brasil. Tinha recebido um telefonema de um velho amigo de infância, que conhecia há mais de 25 anos, desde o tempo de crianças. O amigo disse-lhe que vivia em Lisboa e tinha um emprego para ela num restaurante. Um emprego bem pago. Sabia que ela teria dificuldades em pagar o avião, mas ofereceu-se para o fazer e dar-lhe abrigo na sua casa. Combinou o processo com uma agência de viagens que recebia parte do dinheiro da exploração. Zulmira veio. O amigo esperava-a no aeroporto. Chegada a casa dele, viu na casa outras amigas de infância. Na verdade, tinha telefonado a cerca de 50 mulheres. Viu a Jocelina, a Rosa, a Osemarina… A todas elas a mesma promessa de emprego, a mesma oferta de casa e de passagem aérea. A casa do amigo não era um apartamento qualquer. Era um bordel a operar 24 horas por dia.

A Cristina vinha da Roménia. Dissera-lhe um amigo da família que havia bons empregos em Portugal. Ela sabia que deveria ter um visto de trabalho, mas o amigo garantiu-lhe que poderia tratar disso quando chegasse. Por um sinuoso e longo caminho, que demorou 5 dias numa carrinha sobrelotada, passaram por fronteiras invisíveis, chegando ao almejado destino. Sabia que o amigo já tinha ajudado mais de 100 pessoas a chegarem a Espanha e Portugal. Algumas até tinham telefonado a encorajar familiares e amigos para se fazerem à estrada, tal era a qualidade de vida que as esperava. Cristina acabou na rotunda do Martim Moniz em Lisboa, controlada por um proxeneta, também da rede de tráfico.

Zulmira chegou a Portugal vinda do Brasil. Tinha recebido um telefonema de um velho amigo de infância, que conhecia há mais de 25 anos. A casa do amigo não era um apartamento qualquer. Era um bordel a operar 24 horas por dia.

Kamon vivia nos arredores de Bangkok. O dinheiro que ganhava na agricultura mal dava para sustentar a sua família de cinco. Depois de 14h diárias, o magro sustento mantinha a família no limiar da sobrevivência. Um amigo que residia em Bangkok disse-lhe que viu um anúncio a pedir trabalhadores agrícolas em Portugal, com o salário de 800 euros. Kamon nem queria acreditar que poderia fazer algo que sempre fizera, mas ganhando 15 vezes mais. Respondeu ao anúncio, fez uma entrevista de trabalho, assinou um contrato. O recrutador tratou do visto de trabalho e Kamon entrou em Portugal de forma legal, tendo como destino as plantações agrícolas de Odemira. Chegado ao local, Kamon foi colocado a viver num contentor. Cobravam-lhe a luz e a água, os alimentos, a renda. O traficante disse-lhe que teria também de guardar parte do dinheiro para impostos e, claro, para mandar à família de Kamon. Dos 800 euros sobravam-lhe 50. Trabalhava 12 horas por dia, mas Kamon vivia satisfeito sabendo que pelo menos a sua família vivia melhor. Ou assim pensava.

Como verão, as quatro histórias divergem. Na primeira bastou a oferta de emprego de um familiar. No segundo caso, havia décadas de relacionamento. No terceiro caso, histórias de sucesso. No quarto caso, um anúncio, contrato e visto de trabalho. As histórias representam os diferentes tipos de empreendimento que existem no tráfico de seres humanos. Uns mais sofisticados, outros menos. Desde a pessoa singular que vende a sobrinha, às grandes redes criminosas, as estratégias são diferentes. Podem incluir ou não entradas legais no país, incluir ou não contratos de trabalho, podem ser generalistas ou muito específicas. Em comum têm o facto de gerar capital de confiança nas vítimas. A vítima embarca sem resistir, convencida de que parte para algo melhor.

Com o advento das redes sociais os traficantes desenvolveram o engano com mestria. Uma estratégia que já usavam pessoalmente – o loverboy – assumiu uma dimensão muito maior na última década. Usando estratégias que predadores usam há décadas, apresentam-se como alguém da sua idade com interesse romântico na vítima. Mas ao contrário dos que buscam só o dinheiro da vítima, abusar dela ou prejudicá-la, estas redes de tráfico têm outra agenda em mente. A ideia é ganhar a confiança da vítima, afastá-la do seu círculo social e família e colocá-la em exploração, quer seja sexual, laboral, em mendicidade ou até a realizar crimes. O processo não é rápido. É feito com lentidão e destreza. O mesmo “namorado” engana não uma, mas 15 ou 20 vítimas. Namora com elas seis meses a um ano, antes de as convencer a mudar de local e afastar-se de todos que a podem ajudar. A exploração durará o que a vítima suportar. Pode ser 3 anos ou 12.

Com o advento das redes sociais os traficantes desenvolveram o engano com mestria.

As estratégias dos traficantes vão mudando e evoluindo à medida que o seu modus operandi vai sendo identificado. Adaptam-se a tudo: mudanças tecnológicas, diferentes regras de aviação, novas exigências de documentos. Até à pandemia. São céleres e ágeis. Muito mais ágeis do que as polícias de investigação ou as organizações que apoiam as vítimas. Sabem quem subornar, sabem quem ameaçar. Aproveitam a ignorância, a ineficiência do processo, as lacunas de cooperação.

Percebendo a violência do processo de exploração de uma vítima de tráfico, percebendo a coação física e psicológica em que vivem, às vezes durante anos, é fácil perceber que o foco deverá ser na prevenção. É urgente desmistificar a ideia de que as vítimas têm um perfil específico e todos os outros estão a salvo. Desmistificar a ideia de que existem países que são só de origem e outros só de destino. Desmitificar a ideia de que têm de ter uma idade específica. Desmitificar a ideia de que são todas raptadas e agrilhoadas. Porque é nas lacunas do conhecimento que o traficante opera melhor.

Isto exige um investimento sério e estrutural na educação e formação. Divulgar às potenciais vítimas as estratégias de recrutamento, formar os órgãos de polícia criminal sobre as boas práticas da investigação, mobilizar organizações e organismos dos três setores (público, privado e da economia social) para prevenir e proteger as vítimas que encontram.

As boas notícias é que existem estratégias de prevenção e proteção. As más notícias é que muitas vezes não são usadas. Uma das melhores é criar um ambiente hostil ao traficante. Se numa comunidade as pessoas estiverem conscientes dos métodos de recrutamento, as organizações estiverem formadas para encontrar e proteger vítimas, começa a ser pouco interessante para o traficante operar nesse meio. É crucial que consigamos criar esse ambiente um pouco por todo o mundo, quer seja no mundo real ou virtual. Até que ao traficante não reste nenhum local onde operar. Ou pelo menos muito poucos.

Fotografia de Tim Tebow Foundation – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.