Os cantos da casa

A poesia não se dá bem com altifalantes. Procura os lugares discretos. Mas nela encontramos palavras para as zonas escondidas da nossa existência, como quem ilumina os cantos de uma casa.

Nos finais de ano, multiplicam-se diferentes exercícios de balanço sobre o que de melhor se publicou nos mais diversos âmbitos, da música às artes cénicas, da literatura às artes plásticas, entre outros. O final de 2018 não foi exceção. Trago para este ponto de encontro um pequeno livro de poesia, em cujo lançamento tive o prazer de participar.

A poesia não se dá bem com altifalantes. Procura os lugares discretos. Mas nela encontramos palavras para as zonas escondidas da nossa existência. E, por isso, é difícil falar ou escrever sobre poesia. Parece que ela deixa de o ser quando explicada. Em tantos textos de crítica literária, o que se entrevia fica exposto, sem pudor, perdendo a capacidade de seduzir. Apesar de todas as dificuldades, atrevo-me a deixar algumas palavras sobre um primeiro livro de poesia de Catarina Silva Nunes, publicado em maio de 2018, com a chancela da «Sopa de Letras» (Principia Editora). A Catarina Silva Nunes é antropóloga. Pertence-lhe um estudo de referência sobre círculos e movimentos intelectuais católicos na contemporaneidade portuguesa. Mas este é o seu primeiro livro de poesia. Transporta, assim, a alegria e a fragilidade de todas as géneses.

É difícil falar ou escrever sobre poesia. Parece que ela deixa de o ser quando explicada. Em tantos textos de crítica literária, o que se entrevia fica exposto, sem pudor, perdendo a capacidade de seduzir.

O título, «O amor e a casa», descreve explicitamente as duas partes do pequeno livro de poesia. O primeiro conjunto de poemas declina-se em torno do tópico mais universal na poesia, o amor. Como escreve Catarina Silva Nunes sobre o amor? Como algo que circula, se troca, mas a partir da experiência do despojamento: «Que tu me esvazies de tudo e recebas as minhas mãos cheias de nada». Esse despojamento pode ser silêncio – «o meu amor respira o meu silêncio» – ou a dádiva do tempo – «Nas tuas mãos coloquei todo o meu tempo».

O amor é promessa, é uma escolha misteriosa. É fiducial, ou seja, exige a confiança: «Fechadas eram as palavras/ que me disseste/ Eu acreditei na tua palavra que deveria proteger-me». Amor é a palavra para falar de Deus e do seu rasto. Evocando Etty Hillesum – «Eu sinto Deus que passou onde passaram/ desde o princípio os teus amores incómodos». Nesta passagem pelos enigmas do amor, podem encontrar-se muitas assonâncias bíblicas. Claro, o Cântico dos Cânticos. Mas, de uma forma mais ampla, a literatura bíblica sapiencial.

Ainda nesta primeira secção se anuncia a segunda, que trata (ou cuida) da casa. Devo sublinhar que achei particularmente coesa a segunda parte deste pequeno livro – talvez porque também encontrei aí muitos lugares para o confronto com outras experiências da minha aventura de leitor. Nesta secção, a Catarina Silva Nunes recria um habitat poético muito idiomático. Diria que me parece ouvir aqui, de forma mais distinta, a sua voz poética. Talvez seja um defeito (afeto) de formação, mas enquanto antropólogo também, confrontei-me com muita literatura fundamental sobre a casa – a casa como microcosmos, como fragmento onde o todo se pode reconstituir (não posso deixar de ter presente Pierre Bourdieu e o seu ensaio sobre «A casa ou o mundo às avessas», uma etnografia sobre a cultura cabila, povo do nordeste da Argélia).

Ainda na primeira parte do livro, a casa é imaginada como museu. Museu, porque aí se organiza o desejo – «é um desenho que habita a realidade». Ou seja, é a ficção/liberdade que habita o nosso quotidiano. A casa, na poesia de Catarina Silva Nunes, é um lugar onde os gestos se demoram, onde nos encontramos com o lugar reservado – esse lugar velado pela cortina que encerra e se abre. A casa tem fronteiras interiores – as cortinas, as paredes. Mas, como as outras fronteiras, também estas não dividem, permitem o trânsito, a conversa (não são muros).

Durante a leitura, tornaram-se presentes vários momentos da minha memória intertextual. Antes de outros, a experiência da casa no cristianismo paulino. Aí encontramos, literalmente, uma Igreja «ecológica», entre a casa e a cidade, entre a comunidade e a universalidade do espaço habitado. A casa cristã, na partilha da mesa e no vínculo fraterno, transporta uma revolução silenciosa, onde não há futuro para os nossos muros – não há judeu, nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher… Mas não esqueço, também, o Jesus de tantas narrativas evangélicas, que entra nas casas, inaugurando nelas novas possibilidades de vida.

A casa cristã, na partilha da mesa e no vínculo fraterno, transporta uma revolução silenciosa, onde não há futuro para os nossos muros – não há judeu, nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher…

Explorando o arquivo vivo da poesia, recordo poetas como Daniel Faria, em cuja poesia a casa revela a humanidade: «Homens que são como projetos de casas». Também Manuel António Pina, para quem a casa é o lugar das raízes: «Não foi o caminho de casa que perdi?»; «Por isso os seus passos os levam de regresso a casa». Mas ainda, uma outra voz feminina, a de Adília Lopes. Os seus poemas deslocam-se da rua para a casa, do público para o íntimo. A poetisa rasga um sulco para que mundo e intimidade se comuniquem no limite de um espaço entre o interior e o exterior. No poema, «45 Anos», Adília Lopes escreve: «É tempo/ de regressar/ a casa// A poesia/ não está/ na rua». Um eco evidente das palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen, transpostas para os conhecidos cartazes de Maria Helena Vieira da Silva: «A poesia está na rua». Num imaginário diferente, a casa é, para Adília Lopes, a possibilidade quotidiana de experimentar outra dimensão do tempo: «Vivo/ no instante/ casa/ da eternidade».

Esta aproximação que proponho não dissimula, no entanto, as diferenças entre estas duas casas, a de Adília e a de Catarina. A poesia de Adília Lopes é um artefacto que rompe os limites entre o poético e o prosaico, entre o céu e rés do chão: «Achados/ verbais/ achados/ vitais/ claros/ como vitrais/ claros/ como claras». A casa da Catarina Silva Nunes transporta a transparência do sublime, o belo enquanto sublimidade, a entoação celebrativa própria do sagrado (o canto, a música, o incenso, o corpo ondulante). A casa é sagrada, separada, é uma «elevação» no fio do horizonte, «lugar de tijolo e linhas rectas» «onde o tempo se conforma com o eterno». Esta poesia fala da liturgia da casa. Mas esse sublime não é incorpóreo, tal como a poesia é matéria de escrita e de leitura – na casa, «a poesia suspende-se para deixar passar o pão partido».

Esta poesia fala da liturgia da casa. Mas esse sublime não é incorpóreo, tal como a poesia é matéria de escrita e de leitura – na casa, «a poesia suspende-se para deixar passar o pão partido».

Para mim, leitor assíduo do dominicano José Augusto Mourão, não me foi difícil encontrar traços da sua poesia litúrgica. Nesse catálogo poético, a experiência ritual e litúrgica apresenta-se numa estreia relação com a ecologia do lugar, enquanto lugar interior: o interior da terra, o ventre da baleia; lugares para a dor, onde se estende a mão; lugar em que a solenidade não é altifalante, é silêncio; lugar que somos nós próprios habitados por uma voz interior, corpos feridos, mas dançantes, primaveris; lugares de visitação do Anjo – talvez o mais forte laço entre os dois universos poéticos. Na poesia de Catarina Silva Nunes, o Anjo abraça a solidão, ajoelha-se, toca o cabelo e agarra a cintura. Nessa condição de sublimidade, a casa não é inacessível. É o lugar radical da hospitalidade: «E nunca a minha casa me exilou» (diria que é uma das declarações de fé presentes neste livro de poesia).

A beleza da casa pode ser trágica – a casa degrada-se, despenha-se como uma «ruína vagarosa». É ainda a ambivalência própria do sagrado – a vida é também morada da morte («como a morte se embrenhou em todas as paredes»). Compreendemos assim que a casa seja anamnese, rememoração, reclamação do que noutros momentos e de outras formas a habitou. A casa é, portanto, habitada. Por «habitar» talvez se deva compreender o modo como nós, enquanto espécie, enquanto sociedade humana praticamos e imaginamos o espaço. Na nossa cultura helenizada e cristianizada, a raiz grega oikos parece resumir diversos modos de praticar e imaginar o espaço enquanto pertença, conquista, dominação, proteção, sobrevivência, troca, travessia, etc. Noutras culturas, «habitar» remete para significados algo diferentes. Dizem-me que na língua japonesa, por exemplo, sumai (habitar) está associado às imagens da transparência e do sossego das águas imóveis.

O que é «habitar» neste idioma poético? É conhecer por dentro, é buscar o espanto inicial, é tecer rotinas imperfeitas, mas resgatadas pelo milagre, a casa de todos os dias que se faz canto (o canto tem uma força transfiguradora, para a Catarina Silva Nunes). O canto, como vocalidade especificamente humana, é aquilo que a Catarina convoca permanentemente como gesto de maravilhamento, como força capaz de transformar os dias.

Se levarmos a sério este desafio poético, cantaremos mais em nossas casas.

 

O amor e a casa 
Catarina Silva Nunes
Editora Sopa de Letras

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.