Oh as casas as casas as casas

Casa-património, casa-corpo e casa-mundo.

Começo mal a minha participação neste portal. Logo o primeiro texto que escrevo tresanda a publicidade. Porque vou falar de uma iniciativa que acontece em Coimbra e que parte da Universidade onde trabalho. Peço-vos paciência, limpo os pés e sigo em frente.

2018 é o Ano Europeu do Património Cultural. Assim foi decidido pela União Europeia que propõe pensar o Património como o lugar onde “o passado encontra o futuro”.

2018 é também o ano em que se realiza em Portugal o maior evento polidesportivo de sempre: os Jogos Europeus Universitários vão reunir em Coimbra cerca de 4000 atletas que competem em 13 modalidades entre 13 e 28 de julho. A frase escolhida pela organização para resumir o conceito destes Jogos é “quando fazemos a diferença na vida de alguém, fazemos a diferença no mundo”.

Encontrámos em Ruy Belo, mais concretamente no poema “Oh as casas as casas as casas”, a  metáfora que permite juntar estas belas ideias, acrescentando-lhe uma terceira dimensão. Vamos lá, então, olhar para estas casas, coisas vivas, nas palavras do poeta, porque “as casas nascem vivem e morrem”.

O património é casa. Quando tem paredes e quando não as tem. É o que herdamos e que temos o dever de transmitir para que a memória do que somos não se perca.  O património material são casas e o património intangível, ruas (o que nos permite ir de um sítio a outro, o que proporciona os encontros). “Sem casas não haveria ruas | as ruas onde passamos pelos outros”, diz Ruy Belo.  Os outros que existem ainda fisicamente e os outros que nos precederam e nos deixaram tanto de si, da sua história, do seu tempo.

O corpo é casa. É outro corpo, o da mãe, a nossa primeira casa. Só depois temos casa própria, corpo próprio. Desse corpo cuidaremos (ou não).  E aqui entra a prática desportiva como benéfica para esse corpo enquanto parte de uma escolha de vida saudável.  Que não tem o corpo como centro mas que se ocupa também do corpo. O desporto pode também ser momento de aprender a contar com o outro, ocasião de aprender a estar e ser em grupo. As casa também são corpo para o poeta, corpo dependente de outros corpos: “elas morrem não só ao ser demolidas | Elas morrem com a morte das pessoas”.

O mundo é casa. Disse-o de forma sublime o Papa Francisco na sua encíclica, “Laudate sí”, sobre o cuidado da casa comum. No centro das suas preocupações está, como das nossas tem de estar, o futuro do planeta. Ainda que o dia-a-dia se viva com alguma tranquilidade neste canto do mundo, não é possível ignorar os sinais e as evidências que estão em todo o lado. A Cidade do Cabo, na África do Sul, está em contagem decrescente para o dia em que será a primeira metrópole do mundo a ficar sem pinga de abastecimento de água. Visto de longe, o planeta continua azul.  E regressamos a Ruy Belo “As casas essas parecem estáveis | mas são tão frágeis as pobres casas”.

As casas, disse José Tolentino de Mendonça em “O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas”, também inspirado em Ruy Belo,  “falam do cumprido e do adiado, do sono e da vigília, do fraterno e do oposto, da ferida e do júbilo, da vida e da morte. ”

E assim, tão bem acompanhados, chegamos ao momento publicitário.

Casa-património, casa-corpo e casa-mundo estarão em destaque na 20ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra que toma emprestado o título do poema de Ruy Belo como tema. Esta é uma Semana que não é uma semana. Começou a 1 de março e termina a 28 de abril. Provavelmente, a maior semana do mundo. Nela cabem exposições, peças de teatro, concertos, seminários, conferências, ateliês, visitas guiadas, atividades desportivas, iniciativas para crianças. Quase 100 eventos a celebrar tantas casas e tantas moradas. O programa completo pode ser consultado em www.uc.pt/semanacultural ou em http://agenda.uc.pt.

 

Finda a publicidade, fechamos com o ponto de partida: “Oh as casas as casas as casas”,  de Ruy Belo.

 

Oh as casas as casas as casas

as casas nascem vivem e morrem

Enquanto vivas distinguem-se umas das outras

distinguem-se designadamente pelo cheiro

variam até de sala pra sala

As casas que eu fazia em pequeno

onde estarei eu hoje em pequeno?

Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?

Terei eu casa onde reter tudo isto

ou serei sempre somente esta instabilidade?

As casas essas parecem estáveis

mas são tão frágeis as pobres casas

Oh as casas as casas as casas

mudas testemunhas da vida

elas morrem não só ao ser demolidas

Elas morrem com a morte das pessoas

As casas de fora olham-nos pelas janelas

Não sabem nada de casas os construtores

os senhorios os procuradores

Os ricos vivem nos seus palácios

mas a casa dos pobres é todo o mundo

os pobres sim têm o conhecimento das casas

os pobres esses conhecem tudo

Eu amei as casas os recantos das casas

Visitei casas apalpei casas

Só as casas explicam que exista

uma palavra como intimidade

Sem casas não haveria ruas

as ruas onde passamos pelos outros

mas passamos principalmente por nós

Na casa nasci e hei-de morrer

na casa sofri convivi amei

na casa atravessei as estações

Respirei – ó vida simples problema de respiração

Oh as casas as casas as casas

 

Ruy Belo

Todos os Poemas

Lisboa, Assírio & Alvim, 2000

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.