Ocidente e China, duas ideias de mundo em confronto

É nesta dupla perspectiva, de competição económica e de rivalidade quanto ao modelo político e económico (democrático ou não, livre ou não), que se explica o agravamento das relações entre a China e o Ocidente.

Ainda que o maior problema actual da Europa seja a guerra da Rússia contra a Ucrânia e a agressividade russa em geral, o pano de fundo deste conflito é o crescente confronto com a China. E uma coisa tem que ver com a outra.

Quando a invasão russa da Ucrânia começou, houve alguma dúvida, e até esperança, quanto ao que seria a posição chinesa. Se Pequim condenasse, ou pelo menos não desse apoio à Rússia, seria possível que Moscovo desistisse dos seus intentos e dos objectivos da guerra. Pelo menos podia ser menos agressiva. Se o regime em Pequim fizesse isso, seria também sinal de que valorizava acima de tudo a estabilidade internacional e, eventualmente, ser reconhecido como um actor global indispensável e que contribui para alguns objectivos comuns. Sem verdadeira surpresa, não foi isso que aconteceu. E há várias razões que explicam o interesse da China nesta guerra. E, sobretudo, em não contribuir para a travar.

Para começar, a China pensa sobre Taiwan mais ou menos o mesmo que Moscovo pensa sobre a Ucrânia. Que lhe pertence, que não deve existir autonomamente e que se reserva o direito de eventualmente recuperar esse território pela força. Além disso, ao proteger o Kremlin e recusar punir a Rússia, a China confirmou a sua posição de dominação. É a China que protege a Rússia. Por último, esta guerra serve para ocupar os europeus e os americanos e para tentar reforçar laços com países para os quais esta guerra não diz nada e o comportamento do Ocidente é percebido como pouco consistente. E com frequência esses países têm matérias primas de que a China precisa. Tudo isto, no entanto, só faz sentido num contexto mais amplo.

Para começar, a China pensa sobre Taiwan mais ou menos o mesmo que Moscovo pensa sobre a Ucrânia. Que lhe pertence, que não deve existir autonomamente e que se reserva o direito de eventualmente recuperar esse território pela força.

Como quase tudo o que define o nosso tempo na política internacional, este processo começou com o fim da Guerra Fria, a derrota do modelo comunista e a vitória das democracias liberais e da economia de mercado.

Nesse tempo, ninguém duvidava de que a China era um regime autoritário e sem particular respeito pelos direitos humanos. Tiananmen aconteceu em 1989 (ainda antes da queda do muro de Berlim). O ar do tempo, que era de democratização e de confronto dos regimes autoritários e não democráticos, também chegou ali. E parou. À força e sem grande esforço do resto do mundo para que prosseguisse. Por várias razões.

Ninguém queria uma revolução na China. Democrática ou não, uma revolução no país mais populoso do mundo seria sempre uma ameaça enorme. Por causa da incerteza e do impacto da disrupção gerada. E também porque ninguém sabia o que seria o dia seguinte. Não havia oposição relevante que pudesse ser alternativa. E, note-se, sobretudo nada indicava que daqueles protestos fosse sair alguma espécie de revolução. E não saiu.

Tiananmen atrasou um processo que estava a iniciar-se e que acabou por acontecer em 1999, quando a China foi aceite na Organização Mundial do Comércio. Era a entrada oficial da China na globalização. Um objectivo de Pequim, que queria tirar partido do movimento de expansão global da economia de mercado. E um objectivo do Ocidente, que queria aceder aquele mercado e à sua capacidade de produção a baixo custo. Todos ficavam a ganhar. Inclusive os que acreditavam que a abertura económica da China e a expansão do comércio internacional levariam a reformas e a um processo de democratização gradual. Em vez de revolução, a transformação pela economia. Na China e, acreditava-se, no resto do mundo em geral. Estamos agora a pagar o preço dessa ilusão. Não sendo, à época, óbvio que fosse uma ilusão ou que fizesse sentido fazer de outra maneira.

Em vez de revolução, a transformação pela economia. Na China e, acreditava-se, no resto do mundo em geral. Estamos agora a pagar o preço dessa ilusão.

Agora, já ninguém acredita na revolução ou na transição democrática. A China é e vai continuar a ser, no horizonte previsível, um regime autoritário internamente e um defensor externo de regimes não democráticos. A China não é mais um país. É o país que lidera uma visão diferente do mundo.

Como a União Europeia finalmente declarou em 2019, a China é um parceiro de cooperação em diversas áreas onde há coincidência de objectivos, um parceiro de negociação com o qual é necessário encontrar equilíbrio de interesses, um concorrente económico que procura a liderança tecnológica e, finalmente, um rival sistémico que promove modelos alternativos de governação. É nesta última parte – competição económica com objectivos de liderança tecnológica e promoção de modelos alternativos de governação – que a Europa (tal como os Estado Unidos) se tem focado nos últimos anos.

À medida que a China se desenvolveu mas não se reformou, a União Europeia (UE) percebeu algumas coisas. Que a China competia por matérias primas, por influência nas mesmas regiões do mundo, e fazia-o sem procurar promover a democratização e o respeito pelos direitos humanos, como a UE normalmente faz (pelo menos formalmente). E que, além disso, a China estava a aumentar a sua influência na própria UE. Seja através de investimentos, de tecnologia ou de iniciativas académicas aparentemente inócuas, mas que rapidamente vão condicionando o discurso das universidades que financiam. Acresce que o que se passa no interior da China, a começar pelo tratamento dado aos Uyghurs, em Xinjiang, e passando por Hong-Kong ou pela generalização da vigilância dos cidadãos, começa a ser indisfarçável e impossível de ignorar, por maiores que sejam os interesses económicos.

À medida que a China se desenvolveu mas não se reformou, a União Europeia (UE) percebeu algumas coisas. Que a China competia por matérias primas, por influência nas mesmas regiões do mundo, e fazia-o sem procurar promover a democratização e o respeito pelos direitos humanos, como a UE normalmente faz (pelo menos formalmente).

Este novo olhar sobre a China coincide com a maior assertividade americana, muito fruto da presidência Trump. E, durante a pandemia, com uma diplomacia chinesa muito mais agressiva.

À medida que a relação entre o Ocidente e a China se torna mais tensa, é importante perceber o que justifica esta tensão, e que consequências terá.

Quanto à razão de ser, a perda de inocência ocidental é bem-vinda. A influência chinesa nas democracias ocidentais não se faz, como no tempo da Guerra Fria, através de partidos políticos que partilhem a mesma ideologia. A influência chinesa é muito mais pragmática. Na Europa, e fora da Europa, há lideranças políticas que apreciam o modelo chinês de crescimento económico com centralismo não democrático. A China não precisa de apoiar partidos que ganhem eleições ou façam revoluções. Basta-lhe indicar o caminho a algumas lideranças que se revêem na solução para manter o poder. O que vai acontecendo.

A este processo, acresce a criação de dependências em países onde há muitas matérias primas de que a China, e o Ocidente, necessita. E embora seja emprestado, e não dado, o facto de o dinheiro chinês para o desenvolvimento vir sem exigência de reformas, antes pelo contrário, é uma enorme vantagem para muitos regimes por esse mundo fora.

É nesta dupla perspectiva, de competição económica e de rivalidade quanto ao modelo político e económico (democrático ou não, livre ou não), que se explica o agravamento das relações entre a China e o Ocidente. E, olhando para a posição chinesa quanto à guerra da Ucrânia, é um processo irreversível. A China não quer sequer fazer de conta que procura a mesma paz e estabilidade que nós. O confronto é crescentemente inevitável. O que não quer dizer que seja necessariamente militar. Ou sequer semelhante ao que foi a relação entre o mundo livre e a União Soviética e os seus satélites.

Ao contrário do tempo da Guerra Fria, o afastamento entre o Ocidente e a China dá-se quando já existe uma enorme integração económica. A Europa e a China são os maiores parceiros comerciais de bens. Se a dependência energética da Rússia é um problema em tempo de conflito, imagine-se o impacto de um corte súbito das relações comerciais entre os dois blocos, China e Ocidente. Seria um desastre. E, no entanto, alguma coisa terá de acontecer. Não é possível aumentar o afastamento e a rivalidade e manter-se intacta a interdependência económica. Sobretudo porque, como se viu recentemente, a integração dos mercados não impede o conflito. O afastamento vai começar.

Não é possível aumentar o afastamento e a rivalidade e manter-se intacta a interdependência económica. Sobretudo porque, como se viu recentemente, a integração dos mercados não impede o conflito. O afastamento vai começar.

Para além do destino da Ucrânia, do direito dos ucranianos a escolherem ser democráticos, livres e independentes, a guerra da Ucrânia também é a primeira guerra entre os dois novos blocos. Na verdade, uma guerra por interpostos países, como acontecia na Guerra Fria. A vitória de um ou do outro lado será fundamental para muitos países do mundo definirem o alinhamento dos seus interesses. Se os ucranianos perderem, a China sentir-se-á tentada a imitar, e pelo mundo fora haverá quem acredite que o Ocidente está em decadência. Também por isso, o apoio à Ucrânia e a defesa dos seus interesses é a defesa do nosso lado. O lado da democracia e da liberdade. Mesmo que cheio de defeitos, muito melhor que qualquer alternativa. E em perigo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.