O materialismo há muito que deixou de ser apenas uma teoria filosófica, que apesar de ter muitos fundamentos na antiguidade, teve a sua epifania no século XIX, para passar a ser a forma e as manifestações de vida procuradas pela atualidade.
Obviamente não me refiro à amalgama de partidos de ultraesquerda e nacionalistas, que suportam o governo em Espanha desde há dias. Estou-me a referir ao que encanta atualmente: as muitas pessoas que vivem à base do excesso de exposição das suas vidas no ambiente digital.
O que interessa é o que se tem. O que interessa é ter muitas visualizações nos vários vídeos e fotos, que se publicam em múltiplas redes sociais. Visualizações para quê? Para ter fama e se ser um grande influencer. E isso para quê? Para se ter dinheiro.
É um círculo vicioso que se cria, com base em algo que não existe fisicamente, mas de uma essencial importância: o digital. Mas se o que interessa é ter dinheiro, assim não é necessário estudar. Se o que se quantifica é o valor do que que se faz, é apenas o dinheiro ganho em proveito próprio, não adianta nada estudar e aprofundar a vida. Até porque, quanto mais simplesmente falarmos, mas depressa chegamos a todos. Desta forma, aliás, ganhamos mais dinheiro, recebemos até mais do que os nossos professores na universidade. Basta saber fazer vídeos e publicar coisas. É o trabalho de um influencer digital, de qualquer tipo. Por isso, essa questão de ter uma carreira académica, ou ter uma carreira de estudo, ou a fazer algo que seja em proveito do bem comum, servirá, doravante, para quê? O objetivo é satisfazer todas as minhas vontades, com o que ganhar, o muito que ganhar, para poder comprar aquela bebida cara, aquele carro caro, ou aquela roupa numa loja exclusiva. Porque mostrando que podemos comprar essas coisas ganhamos visualizações, ganhamos fama e, claro está, mais dinheiro.
O objetivo é satisfazer todas as minhas vontades, com o que ganhar, o muito que ganhar, para poder comprar aquela bebida cara, aquele carro caro, ou aquela roupa numa loja exclusiva. Porque mostrando que podemos comprar essas coisas ganhamos visualizações, ganhamos fama e, claro está, mais dinheiro.
Existem personagens neste altamente rentável novo negócio, como Andrew Tate [1], que defendem ideias abjetas e estilos de vida fundamentados no que se vive enquanto sinal exterior da riqueza material, assim como a capacidade de ser belo esteticamente (não estamos a falar do belo renascentista, que via o homem como um ser capaz de tudo aprender, de tudo atingir e de cultivar a estética como fonte de alimento da alma e de construção de um mundo mais perfeito). Utilizam “o belo” para ter mulheres e usam-nas como mercadoria. E, provavelmente, há mulheres que também o fazem.
Mas o que me interessa verificar é que o que centraliza tanta gente é receber dinheiro e ter uma vida de fama, sob o olhar do mundo inteiro. Nessa nova perspetiva de conceber o real, não interessa o bem comum, mas o bem próprio. Antigamente, quando éramos crianças e nos perguntavam o que queríamos ser quando fossemos crescidos, uns diziam futebolistas, outros diziam bombeiros, outros diziam polícias. Algo nos unia: essas profissões, apesar de serem profissões rentáveis, centravam-se no bem comum e o primeiro desejo de uma criança não era ter coisas, ou dinheiro, ou fama. Um mecânico, por exemplo, pode receber muito dinheiro, mas conserta o carro de outros. O bombeiro apaga fogos e o polícia zela pela segurança. Mesmo o futebolista dá alegrias, dá prazer aos outros. Até os que sonhavam ser palhaço, humorista, gostavam de fazer rir os demais. Saiamos de nós, para ir ao encontro dos outros.
O que isto tem a ver com fé? Tem muito! Primeiro, porque estamos a centrar-nos no vazio. Há uma completa ausência da noção da virtude e dos valores que têm a ver com o próximo, com a defesa da nossa Casa Comum, com a construção coletiva de um melhor futuro. Depois, nós, dentro da Igreja, estamos a correr um enorme perigo: o de que cristãos, leigos e clérigos não percebam aquilo que acabo de expor e caiam na tentação de fazer exatamente o mesmo, cirando a produtos mediáticos carregados de ideias que levam à divisão e discórdia. O caso dos cristãos ultraconservadores e/ou tradicionalistas é paradigmático: propagam, nas várias redes e canais digitais, vídeos contra o Papa Francisco, contra o Sínodo, contra os bispos. Não falamos de evangelizar e, sim, de mostrar o pior da Igreja, transportando, igualmente, para a nossa prática, aquilo que de mau existe no ambiente digital. Usamo-lo para alimentar o ego, como um qualquer influencer, sem a preocupação – que deveria ser sempre a primeira de um cristão – de dar a conhecer o Evangelho, testemunhando-o, ao invés de usar as redes digitais para se anunciar a si mesmo. Podia dar inúmeros exemplos de leigos e clérigos de diversas nacionalidades, que pura e simplesmente vivem à base os seus vídeos e das suas visualizações. São ultraconservadores, tradicionalistas ou ultra progressistas, mas que, de qualquer forma, não mostram a voz da Igreja, que é sempre uma voz de acolhimento e do cuidado igual e permanente com TODOS.
Usamo-lo para alimentar o ego, como um qualquer influencer, sem a preocupação – que deveria ser sempre a primeira de um cristão – de dar a conhecer o Evangelho, testemunhando-o, ao invés de usar as redes digitais para se anunciar a si mesmo.
A nossa missão cristã é lutar pelo bem comum, pelo bem que Deus quer para todos. Para isso é necessário evangelizar, testemunhar e, se for necessário, revelar, igualmente, as nossas dúvidas. É mostrando a realidade da nossa vida (mesmo de quem tem dúvidas, mas que se esforça para ser cristão, apesar de todas as vicissitudes que tem de se enfrentar), que podemos transformar o digital num espaço útil, amoroso, criador de vida. Se na carta a Diogneto se dizia “Vede como eles se amam”, não podemos agora mostrar “Vede como eles falam mal uns dos outros, como criticam o Papa, vede como defendem coisas completamente diferentes das que pede Cristo”. O nosso foco deve ser dar a conhecer como tentamos, no nosso dia-a-dia, alimentar o desejo de Amor por Deus, que nos une na procura do bem comum. Na realidade, só vendo e percebendo que todos temos as nossas circunstâncias, dúvidas, tristezas, alegrias, angústias, sucessos, crescimentos, esperanças, daremos nota de que aquilo que se mostra no digital não é uma vida de fantasia. O Homem na rede digital é o Homem do apelo plasmado na Constituição Apostólica Gaudium et spes do Vaticano e, que, em síntese, nos desafia a usar o Continente Digital, não como um campo de batalha ou separação, mas para mostrar que somos humanos, que somos crentes e que amamos Jesus.
[1] Andrew Tate é uma celebridade de internet. Ganhou proeminência após a sua carreira no kickboxing, através de visões amplamente consideradas controversas, oferecendo cursos pagos, bem como recurso ao marketing de influência e ao seu canal de Youtube. Os comentários misóginos e discursos de ódio em várias matérias culminaram no seu banimento de várias plataformas como o Youtube, Twitter e Instagram. Defende que as vítimas de agressão sexual compartilham a responsabilidade com os agressores sexuais. Tate está detido desde 29 de dezembro de 2022 pela polícia romena, sendo acusado de tráfico humano, violações e formação de uma unidade de crime organizado.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.