O "terramoto" não me abala - Ponto SJ

O “terramoto” não me abala

Olhando o passado recente, não há fórmula, receita ou mapa que nos valha. Mas há futuro.

Como animal encadeado pelos faróis de um carro no meio da noite, o país político está paralisado. O inesperado crescimento da Aliança Democrática (AD), a queda do Partido Socialista (PS), a elevação do CHEGA a força política incontornável, o esmaecer de várias forças políticas à esquerda (que toldaram a consolidação do LIVRE), mutaram a fisionomia do tabuleiro. Primeiro, veio a estupefação. Em seguida, o pânico. E, de momento, solta-se a violência argumentativa, como se agressão fosse sinónimo de força.

São bem instáveis estes tempos que nos são oferecidos viver. A atual situação requer delicadeza e reflexão. Pede bisturi, não martelos. A força da democracia reside na sua indelével fragilidade. É pela sua permanente vulnerabilidade, pela sua exposição aos ares dos tempos, que ela é confiável, pois permite, a cada ciclo, mudar os protagonistas. Isto deve inspirar prudência no momento da análise, para evitar facciosismos injustificados entre eleitores iluminados e manipulados, conscientes e displicentes.

Imaginar que o resultado destas legislativas é fruto de mera manipulação ou somente de desgosto temporário, é negar a realidade. Há um espírito de revolta e ressentimento, que tem sido ignorado e até desprezado, que cresce com cada desvalorização das legítimas preocupações dos portugueses. Ao responder com insulto a propostas insultuosas, terraplanámos o horizonte político-partidário. Com isto, as diferenças entre visões estruturais de país e populismos parasitários do ressentimento – diferenças essas que são reais – deixaram de ser significantes, e, por isso mesmo, irrelevantes para muitos no momento de traçar a cruz.

As políticas identitárias são políticas do ressentimento. A causa é justa, mas só conhecem a hostilidade, são desprovidas de plano de paz, de mecanismos de construção de um horizonte partilhado. Promovem ajustes de contas, e não reconciliação. Ao entrar no jogo do fosso entre um “nós moral” e um “eles abjeto”, confirma-se e galvaniza-se os promotores desta narrativa, o que resulta numa política partidária portuguesa refém da perceção da polémica presente, invés de centrada numa confrontação de visões para um país futuro.

Colhemos hoje os frutos da distopia que semeámos. Há que cultivar esta memória penitencial. Nos últimos vinte anos tivemos maiorias absolutas monopartidárias e de coligação, maiorias relativas de coligação e monopartidárias, governos representativos do partido mais votado e de entendimentos que forjaram maiorias parlamentares. Nenhuma destas resoluções foi eficaz no debelar da perceção duma desigualdade estrutural na sociedade portuguesa entre um mundo dos que pertencem, dos escolhidos, dos que por um qualquer direito hereditário ou mero arrivismo fazem parte, e um mundo dos que são abafados, descartados, ignorados, constantemente enganados e abusados, que não são tidos em conta, mas que têm de “pagar a conta”, e que sustentam o estilo de vida dos primeiros.

Olhando o passado recente, não há fórmula, receita ou mapa que nos valha. Mas há futuro. Porque o conflito presente é o rascunho de um futuro partilhado. O momento histórico é grave, mas a história não pertence aos seus agentes. Há um só Senhor da história, que pede somente fidelidade ao seu estilo, em todos os contextos.

O “terramoto” não me abala. Há que resistir à rude tentação de reduzir um homem ou um grupo de pessoas à categoria de inimigos. Deixar o centro da ação política à tensão entre ambivalências individuais e antagonismos coletivos, peca por falta de ambição. Há que enjeitar o desejo violento de diabolizar o outro. Ninguém, absolutamente ninguém, deve ser deixado à beira do caminho. Temos este dever como cristãos. Há que ser claros e assertivos na denúncia, e firmes e universais no anúncio de um futuro que é pertença de todos.

Das frechas de um solo “betonizado” brotará a vida. Neste momento, que não passa de um instante na história da humanidade, somos chamados a construir desde os escombros de uma sociedade fraturada. Tal tarefa não nos deve amedrontar, mas sim reforçar a confiança na procura de um lugar em que todas as vozes se fazem ouvir na busca do bem, pois este, tal como a justiça, não se alcança de uma vez para sempre. Há que ser conquistado cada dia [Fratelli Tutti 11].

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.