O Senhor não me chama para ser solista

Como é bom poder reconhecer uma Igreja próxima que nos confirma a vocação familiar. Termos presentes sacerdotes e outros consagrados na rotina e na banal normalidade, para além dos acontecimentos marcantes, confirma-nos como família.

A poucos dias do Domingo de Pentecostes, teve lugar a 50.ª Semana Nacional para Institutos de Vida Consagrada, organizada pelo Instituto Teológico de Vida Religiosa de Madrid, de 17 a 21 de maio, sob o tema “Consagrados para a vida do mundo”. Esta edição online das Semanas Nacionais, onde se procurou fazer memória agradecida dos 50 anos de caminho feito à luz do Concílio Vaticano II, arrancou com uma mensagem em vídeo do Papa Francisco.

Exalta o Papa, nesta mensagem de abertura, que a vida consagrada apenas se compreende «no diálogo com a realidade», «consagrando-se todos os dias» para não «se tornar estéril». E o Papa Francisco começa exatamente por agradecer a vida e exemplo do cardeal Aquiloso Bocos Merino, membro fundador do Instituto Teológico de Vida Religiosa de Madrid, por «não apenas ter compreendido a riqueza da vida consagrada, mas por vivê-la», por «tê-la feito frutificar», fazendo da sua vida «catequese para melhor praticá-la».

Um dia antes, na celebração de um batizado e aniversário de casamento, algures pela terra de Barcelos, um dos sacerdotes jesuítas dizia que, para ele, a vocação de padre e a vocação de matrimónio se completam entre si, e que se sente mais confirmado e pleno ao acompanhar famílias, ao partilhar vida com elas. Esta frase foi ecoando no meu coração ao longo destes dias, por fazer memória de inúmeros momentos bonitos e gozosos.

Ao folhear um álbum de fotografias de família (ou, sendo mais realista, ao deslizar o dedo num ecrã táctil, percorrendo fotografias de família), é natural que os instantes retratados com alguém que consagrou a vida a Deus sejam memórias de sacramentos e pouco mais: o casamento, os batismos, as primeiras comunhões, talvez um crisma… Mas Deus está connosco todos os dias, em pequenos e grandes momentos, na vida do mundo. Como é bom poder reconhecer uma Igreja próxima que nos confirma a vocação familiar. Termos presentes sacerdotes e outros consagrados na rotina e na banal normalidade, para além dos acontecimentos marcantes, confirma-nos como família. Ajuda-nos a discernir caminho. A escolher mais vezes o lado luminoso do que nos é dado viver. Porque são catequese para melhor praticarmos a nossa vida cristã.

Há uns anos, fiquei profundamente tocada pela história de vida do casal Chiara e Enrico Petrillo. Foi impossível interromper a leitura do livro Nascemos e jamais morreremos depois de a começar. Mais tarde, fui regressando a uma ou outra passagem do livro, para a voltar a saborear. Mas só há uns dias, numa Catequese para Pais e Filhos, organizada pelos GVX, tomei consciência que todo o caminho que este casal fez foi feito a par e passo com o Frei Vito.

É um privilégio partilhar história com consagrados que generosamente dão do seu tempo. Que dão um colo desajeitado a um recém-nascido. Que são força e luz numa crise de adolescência. Que se juntam a um grupo de amigos numa caminhada pela serra. Que cozinham uma bella pasta em cozinha alheia. Que se envolvem com todas as entranhas para vencer uma partida de Secret Hitler. Que sofrem com a comunidade a perda de alguém muito amado. Que lutam ao lado de um casal que vive uma grande crise no matrimónio. Que fazem milhares de quilómetros para resgatar num abraço e numa boa conversa uns pais que acabam de saber que o filho não vai sobreviver à doença.

É deveras consolador reconhecer que o caminho feito pela minha família e por tantas famílias da Comunidade Inaciana de Braga é um caminho calcorreado com a Igreja. Uma Igreja que se faz próxima, não apenas nos acontecimentos extraordinários, mas na aparente monotonia do dia a dia. Uma Igreja que também se faz presente em momentos duros, resgatando-nos para a luz.

Nas comemorações do 25.º Dia Mundial da Vida Consagrada, a 2 de fevereiro deste ano, o Papa Francisco disse aos consagrados presentes que «o Senhor não os chama para ser solistas, mas para fazer parte dum coro, que às vezes desafina, mas sempre deve tentar cantar em conjunto.» Ora, esse coro pode ir para lá de uma comunidade ou ordem religiosa. Esse coro pode ser uma comunidade de amigos no Senhor. Que frutifica e vive a riqueza da vida cristã na sua plenitude. Eu, que me assumo como cantora sem grande afinação, agradeço do fundo do coração poder entoar melodias com tanta gente que vale a pena. Pois sinto-me mais confirmada e plena.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.