Uma amiga mostra-me fotografias suas. Primeiro, com o vestido de casamento da avó – um vestido branco de alças e pelos joelhos. Depois, outra em que enverga o vestido da mãe – branco também, mas até aos pés, com mangas a tapar os ombros e um decote mais recatado. Por fim, mostra-me o vestido com que a irmã mais velha se vai casar – um vestido branco maravilhoso coberto de pérolas, onde nenhuma parte do seu corpo fica exposta. A irmã da minha amiga usa véu por escolha.
Três gerações de mulheres no Egito em três vestidos. Uma mudança que podia significar progresso, mas marca outra coisa. Como em tantas partes do mundo, assistimos ao desaparecimento gradual da mulher da esfera pública. Veja-se o que se passa no Afeganistão dos talibãs. Mais vigilância sobre o corpo feminino. Menos direitos. Um desrespeito crescente pela sua autonomia. E tudo isto vai alimentando a raiva.
Uma raiva que cresce ao vermos o número de mulheres que sofre de violência doméstica e, antes disso, no namoro. Um padrão de violência que culmina no femicídio – o assassinato de mulheres. No Reino Unido, uma mulher tem mais probabilidade de morrer às mãos do parceiro do que num acidente de automóvel, sem cinto de segurança. No entanto, quando falamos revoltadas sobre estes temas, pedem-nos calma. Como se tivéssemos de nos tornar pedagogas da nossa própria dor para que a levem a sério.
A ideia do “monstro” – esse homem aberrante, desconectado do comum dos mortais, como Dominique Pélicot – é conveniente, porque nos distrai da verdadeira questão. Faz-nos acreditar que não é um problema sistémico, mas uma anomalia isolada. Mas os predadores não vivem à margem da sociedade.
A ideia do “monstro” – esse homem aberrante, desconectado do comum dos mortais, como Dominique Pélicot – é conveniente, porque nos distrai da verdadeira questão. Faz-nos acreditar que não é um problema sistémico, mas uma anomalia isolada. Mas os predadores não vivem à margem da sociedade. São o padeiro, o médico, o jornalista, o motorista, etc.. Em Portugal, um grupo no Telegram, com 70 mil homens, partilha imagens de mulheres sem o seu consentimento. Outro grupo nessa mesma plataforma, aglomera milhares de homens que partilham táticas entre si para violar mulheres. São outros 70 mil. Não é um monstro ocasional. É o sistema que permite que existam. E tudo isto vai alimentando a raiva.
Na Argentina, Milei quer remover o feminicídio do código penal. A ONU revela que, a cada dez minutos, uma mulher é morta intencionalmente. E enquanto estas mortes são normalizadas, a maior potência mundial elege para Presidente um homem condenado por 34 crimes – tornando-a, a passos rápidos, a maior decadência mundial. E querem que não estejamos zangadas?
Mesmo os homens que não se revêem no modelo patriarcal, beneficiam dele. Querem que expliquemos, com paciência, que o patriarcado também prejudica os homens? Que a masculinidade tóxica os limita? Que um dos motivos para a maior taxa de suicídio nos homens é essa pressão para não sentirem, não falarem, não expressarem, não mostrarem fraqueza? Como se apenas o sofrimento feminino não fosse suficiente para que compreendam a perpétua importância desta luta.
Inquieta-me ver a tendência cada vez mais popularizada das tradwives, as mulheres que romantizam uma vida de submissão doméstica. É isto que queremos ser? Defendo que todas as mulheres tenham a liberdade de escolher a vida que querem, e isso inclui todas as que escolhem esta para si. Mas o monólogo de Jo March (Mulherzinhas), ecoa-me na cabeça: “As mulheres têm mentes e almas, bem como corações, ambição e talento, bem como beleza, e estou farta que me digam que uma mulher só serve para amar…” (tradução livre).
Depois de tantos séculos em que a poesia, a música, ou as descobertas científicas feitas por mulheres foram boicotadas ou silenciadas porque estavam presas a uma vida doméstica, é desconcertante ver esta tendência. Este modelo de servidão beneficia o mesmo sistema que nos quer limitar. E tudo isto vai alimentando a raiva.
Um pouco por toda a parte, as nossas liberdades estão a ser vigiadas, restringidas e censuradas. Países e empresas que antes se orgulhavam dos seus valores progressistas e inclusivos, caminham agora no sentido inverso.
E se a tristeza é aceite, não só socialmente, mas também no seio familiar, se as lágrimas femininas são acolhidas com compreensão, o que acontece com a raiva? A nossa raiva é minimizada, ridicularizada, considerada um descontrolo emocional. É condescendentemente descartada.
Mas estamos zangadas. E se quem me lê não sente esta revolta, então não tem aquilo que é preciso para fazer deste mundo um lugar melhor, mais justo para todos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.