O que fazer com estes populismos?

Trago aqui dois fenómenos que me parecem mover profundamente os populismos e os nacionalismos: a democracia púdica e o politicamente correcto das migrações. Comecemos pela democracia.

Hoje vemos a Europa polvilhada de nacionalismos e populismos – termos que muitas vezes aparecem como sendo coincidentes. Se nos detivermos brevemente em cada uma das palavras, rapidamente nos damos conta de que são conceitos distintos. Adiante: a verdade é que partidos de extrema-direita, grupos “nem de esquerda nem de direita”, partidos “anti-partidos”, populistas, nacionalistas, anti-imigração, eurocépticos, têm obtido resultados assinaláveis nas eleições na Europa ao longo deste último ano, chegando a formar governo nalguns países.

Importa reconhecer que até agora a Europa não aprendeu nada com os movimentos populistas ou com os nacionalistas. Os votos que estes partidos têm conseguido na Europa ao longo do último ano não se devem a factores económicos, mas estritamente a questões políticas. E estas merecem toda a nossa atenção. Por isso, trago aqui dois fenómenos que me parecem mover profundamente os populismos e os nacionalismos: a democracia púdica e o politicamente correcto das migrações. Comecemos pela democracia.

É cómodo ostracizar os movimentos populistas e nacionalistas. É um mecanismo de reforço do poder. É sempre confortável dizer que quem está do outro lado está errado, porque de alguma forma nos faz sentir mais seguros onde estamos – e mais ainda quando é grande a nossa insegurança. Depois permite-nos continuar a fazer o que sempre fizemos e, como o outro é uma ameaça, importa reforçar o nosso poder, enquanto baluartes da estabilidade. E a verdade é que hoje, se alguma resistência é apresentada a tudo o que seja transferência de poderes para Bruxelas, vem logo a acusação de que se é nacionalista.

Existe o risco real de querer combater estes movimentos decidindo verticalmente – o que, a bem dizer, não é mais do que consolidar um caminho já iniciado. Até agora, fomos assistindo a uma concentração de poderes em Bruxelas, que uniformiza e centraliza, e a um esvaziamento do papel dos Parlamentos (símbolos autênticos da democracia e da pluralidade) em matérias importantes para os cidadãos. Recordemos, por exemplo, que Martin Schultz, até há uns meses presidente do Parlamento Europeu e principal adversário de Angela Merkel nas últimas eleições, tinha a ambição de criar uns Estados Unidos da Europa até 2025. Mas quem é que lhe disse que queríamos tal coisa? Aquilo que há uns anos seria uma condução da Europa a partir do gabinete, a régua e esquadro, agora, com os movimentos populistas, arrisca-se a ser reforçado, tal é o medo dos abanões maiores que poderão vir e tal é a falta de confiança que os líderes parecem ter nos sistemas democráticos. Bruxelas quer cerrar fileiras. O fundamentalismo de fechar fronteiras é tão pouco da boa tradição da Europa como o fundamentalismo de as derrubar à força.

Diante de populismos e extremismos, lutar hoje pela democracia na Europa talvez não passe por construir “blocos centrais” de grandes partidos que ocupem o espectro do centro-esquerda ao centro-direita. O caso da Alemanha é um bom exemplo do que quero dizer. Bruxelas e os governos europeus manifestam a sua alegria com a estabilidade que a grande coligação CDU-SPD oferece num país com uma chefe de Governo que tem sido o fiel da balança neste território. No entanto, consideremos também que isto significa que a AfD, de extrema-direita, eurocéptica e anti-imigração, se torna líder da oposição. Líder. Ora, subitamente, um partido que obteve pouco mais de 10% dos votos ganha uma projecção nacional imensa e sobretudo torna-se a alternativa imediata ao Governo.

Não é próprio de uma democracia buscar necessariamente coligações de união nacional. Não é por isso que é mais democrático, nem é por isso que defende melhor o regime. Muito pelo contrário. Neste momento, paradoxalmente, promover grandes blocos centrais na Europa onde florescem movimentos nacionalistas é integrar estes movimentos na alternância governativa habitual ou pelo menos dar-lhes uma capacidade negocial que os votos dos eleitores não espelham necessariamente.

Promover um clima de diálogo passa por deixar a democracia funcionar verdadeiramente, enriquecendo os Parlamentos nacionais com a diversidade que a democracia permite: seja a diversidade partidária, seja a das diferentes culturas e identidades que fazem parte do projecto europeu e de cada Estado autónomo, uno e simultaneamente plural. A democracia verdadeiramente vivida floresce a partir do espaço que oferece às suas diferentes sensibilidades para serem reconhecidas e se preservarem – penso nas culturas e tradições locais, nas necessidades especiais e urgentes das zonas pouco povoadas, nas regiões com identidades vincadas e que merecem um estatuto distinto. O que importa é levar realmente aos Parlamentos as grandes questões da vida das pessoas, o que não exclui os acordos de regime que se queira fazer sobre temas geracionais e que ultrapassem uma legislatura.

Quando a democracia tem medo de ser democrática (ou seja, de dar voz ao povo, representado institucionalmente no Parlamento), medo do debate verdadeiro, do confronto sério, pode então gerar-se ruptura e divisão. Esta democracia púdica, com medo de ser ela mesma, não é uma resposta consistente aos nacionalismos. Os partidos do arco governativo correm o risco de ficarem na História como aqueles que esvaziaram a Europa de significado, enquanto enchem Bruxelas de um poder que os cidadãos não lhe querem conferir.

Ainda mais acutilante parece-me ser a política de imigração e de refugiados. O politicamente correcto mata à partida qualquer discussão sobre este tema. Mas este poderá ser o ponto decisivo através do qual a Europa vai poder delinear o seu futuro, seja a nível interno (qual é a sua identidade; como mantê-la num contexto multicultural) seja no seu posicionamento global (como age no exterior; quantas vozes e quantas caras tem). Sobre este tópico dedicar-nos-emos numa próxima oportunidade. Por agora, fica a nota: uma democracia púdica não pode deixar de gerar ruptura e divisão.

 

PS: Paralelamente a este texto, vale a pena ver como a guerra na Síria é espelho das posições internacionais das grandes potências: a interferência discreta e eficaz russa, o desinteresse e irresponsabilidade americanos, o distante mundo chinês e, claro está, a apatia europeia. Entretanto, a Turquia aproveita para fazer o seu jogo privado: dizimar os curdos do norte da Síria, sobretudo em Afrin (google it, que é para lá que a guerra vai).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.